No dia 11 de abril, a United States International Trade Commission (USITC) anunciou uma revisão nas tarifas aplicadas a produtos importados pelos Estados Unidos, com destaque para a isenção de itens eletrônicos e seus componentes essenciais. Na mesma data, a Casa Branca publicou uma nota oficial sobre a Ordem Executiva 14257, ressaltando que determinados bens — especialmente semicondutores — ficarão fora do escopo das novas tarifas. Essas medidas revelam uma preocupação estratégica: a crescente vulnerabilidade dos Estados Unidos diante do avanço tecnológico da China. Mais do que uma simples guerra tarifária, o embate entre as duas potências evidencia uma disputa geopolítica profunda pelo domínio da indústria tecnológica global: semicondutores, baterias e inteligência artificial.
As tarifas implementadas durante o segundo governo Trump representaram um ponto de inflexão nesse cenário, ao intensificaram as tensões no comércio bilateral e colocaram em xeque a capacidade dos EUA de preservar sua liderança em tecnologias críticas — essenciais tanto para o crescimento econômico quanto para a segurança nacional. O anúncio recente da USITC e da Casa Branca devem ser compreendidos nesse contexto mais amplo, no qual semicondutores, baterias e inteligência artificial não são apenas setores estratégicos, mas também vetores centrais de uma disputa geopolítica. Especialmente, em razão do cerne dessa rivalidade residir nas cadeias de suprimentos globais desses setores que se localizam na Ásia.
De acordo com a ex-vice-secretária de Defesa dos EUA, Kathleen Hicks, a China representa hoje o “maior desafio de ritmo” enfrentado pelos Estados Unidos. Em outras palavras, é a China quem estabelece a velocidade em áreas-chave de capacidades estratégicas — e cabe aos EUA acompanhar ou superar esse compasso para manter sua posição e dissuadir avanços chineses. Hicks ressaltou ainda que o desafio estadunidense vai além de ampliar sua produção tecnológica doméstica: trata-se de garantir sua integração e implantação efetiva, o que remete diretamente à dependência de minerais críticos. No caso dos semicondutores e dos sistemas de inteligência artificial, destacam-se minerais como silício (base dos chips), gálio e germânio (usados em semicondutores avançados), além de elementos de terras raras como neodímio e praseodímio, essenciais para componentes magnéticos de alta precisão. Esses materiais são fundamentais para o desempenho de data centers, sensores, aceleradores de IA e infraestrutura de computação de alta performance - cuja extração e refino desses minerais se concentra na China.
Esse panorama se refletiu de forma clara na reação do mercado à recente revisão tarifária: as ações da Apple — empresa que mantém mais de 90% de sua produção na China — caíram 8,8% logo após o anúncio. Segundo dados da United States International Trade Commission (USITC), entre 2019 e 2023, a China foi responsável por 24,7% das importações americanas no setor de eletrônicos, o que evidencia o nível de exposição dos Estados Unidos à economia chinesa nesse campo. Nesse contexto, impor tarifas agressivas sobre eletrônicos — como nos períodos mais intensos da guerra comercial — significaria comprometer a estabilidade de um ambiente já sensível e interdependente.
A indústria global de semicondutores é um exemplo emblemático dessa vulnerabilidade. Trata-se de uma cadeia altamente fragmentada e hiperespecializada, composta por projetistas de chips, fundições, fornecedores de equipamentos e produtores de materiais localizados em diferentes países. Enquanto empresas americanas como NVIDIA, Qualcomm e Intel lideram no design de chips avançados, elas dependem fortemente de fundições em Taiwan e na Coreia do Sul, que, por sua vez, utilizam equipamentos produzidos no Japão e na Holanda, além de matérias-primas processadas na China continental. A etapa final da produção envolve montagem, testes e embalagem, geralmente realizados no Sudeste Asiático, antes que os componentes retornem a fábricas espalhadas pelo mundo.
Diante dessa complexa interdependência, medidas tarifárias unilaterais — especialmente em setores estratégicos, como eletrônicos e semicondutores — não apenas encarecem a produção doméstica nos Estados Unidos, como também introduzem incertezas no mercado global, afetando decisões de investimento. Além disso, podem desencadear respostas retaliatórias, como já demonstrado pela China, que impôs restrições à exportação (aplicações de licenças) de 7 minerais críticos: samário, gadolínio, térbio, disprósio, lutécio, escândio e ítrio— insumos fundamentais para tecnologias emergentes, como baterias, chips e inteligência artificial.
O avanço tecnológico chinês reposicionou Beijing como um dos principais atores na disputa pela liderança global, desafiando frontalmente a hegemonia industrial e tecnológica dos Estados Unidos. Amparada por investimentos robustos em pesquisa e desenvolvimento, e impulsionada por políticas estatais de fomento à inovação do Made in China 2025, a China consolidou sua posição não apenas como centro da manufatura global, mas também como protagonista em setores de ponta - aprofundando da iniciativa China Standards 2035, que visa estabelecer padrões tecnológicos globais nas próximas décadas, como inteligência artificial, telecomunicações e semicondutores.
A capacidade crescente da China de produzir e exportar bens de alto valor tecnológico tem minado a primazia estadunidense nesse campo, intensificando uma competição estrutural. Essa disputa não se limita a tarifas e desequilíbrios comerciais: ela se manifesta em subsídios massivos, políticas industriais agressivas e práticas como dumping. Além disso, o governo chinês tem buscado reduzir sua dependência de fornecedores estrangeiros, sobretudo em segmentos de alta tecnologia — ainda que empresas dos EUA demonstrem interesse em estabelecer joint ventures no mercado chinês.
Nesse contexto, suscitam-se questões quanto à eficácia das sanções e tarifas como instrumentos estratégicos para conter o avanço tecnológico chinês. A crescente escalada tarifária por parte dos Estados Unidos pode se revelar, mais uma vez, um erro de cálculo. A emergência de modelos chineses de inteligência artificial generativa, como o DeepSeek, é um exemplo eloquente. O surgimento dessa tecnologia ocorreu mesmo diante das restrições estadunidenses à exportação de componentes essenciais — como os chips H100 (de última geração) e H800 (versão limitada) da Nvidia, amplamente utilizados no treinamento de modelos de IA. Esse cenário evidencia que, apesar das pressões externas, a China continua encontrando caminhos para desenvolver soluções autônomas e sofisticadas, sinalizando que a contenção tecnológica pode não surtir os efeitos desejados, e até mesmo acelerar a busca por autosuficiência.
O esforço por autonomia tecnológica não é exclusivo da China. Os Estados Unidos também adotaram medidas estratégicas diante da crescente vulnerabilidade exposta pelas cadeias globais de suprimentos. Um exemplo é o CHIPS and Science Act, sancionado em 2022, que prevê bilhões de dólares em investimentos para reerguer a indústria doméstica de semicondutores. A proposta — formulada ainda no governo Trump e aprovada sob Joe Biden — proíbe o uso dos recursos federais fora do território americano, reforçando a prioridade pela reindustrialização nacional.
A Intel, por exemplo, anunciou novos projetos em quatro estados, incluindo a transformação de terrenos nos arredores de Columbus, Ohio, em um futuro polo de produção de chips de inteligência artificial, com início previsto para 2027. O plano inclui ainda reformas em instalações no Novo México e Oregon, além da ampliação da fábrica no Arizona. Tais investimentos visam a reverter a perda de protagonismo da Intel frente à Taiwan Semiconductor Manufacturing Co. (TSMC) ao longo da década de 2010 — um declínio que resultou em menor capacidade competitiva e margens de lucro reduzidas. No entanto, esse reposicionamento estratégico está inserido em um ambiente internacional cada vez mais regulado por preocupações com segurança nacional. Empresas multinacionais inseridas em setores críticos têm enfrentado um novo conjunto de barreiras legislativas e regulatórias, que, embora justificadas sob o argumento da resiliência industrial, comprometem o funcionamento de um sistema multilateral baseado em regras.
Esse movimento revela uma mudança estrutural na ordem econômica global: a transição de um regime liberal e interdependente para um modelo de comércio seletivo, pautado por alianças estratégicas, rivalidade sistêmica e controles estatais mais rígidos. Em um mundo cada vez mais fragmentado, a governança da tecnologia se torna um campo central da geopolítica do século XXI — e o epicentro dessa disputa está, sem dúvida, nas cadeias de valor de semicondutores, minerais críticos e plataformas digitais emergentes.
Outro setor que ilustra com clareza a capacidade da China de liderar indústrias globais por meio de integração vertical e escala produtiva é o de baterias. Combinando apoio estatal e um ecossistema empresarial altamente dinâmico, o país construiu uma cadeia de valor quase autossuficiente — do fornecimento de matérias-primas à fabricação do produto final. Regiões como Sanhe, no sul de Guangdong, concentram todas as etapas da produção em um único polo industrial, em um modelo que os próprios chineses chamam de “o dragão inteiro”.
Empresas como CATL, BYD e Ganfeng Lithium não apenas dominam o mercado global, como também definem seus padrões tecnológicos. A China é responsável por cerca de 75% das baterias de íons de lítio produzidas no mundo, além de abrigar a maioria das refinarias e fábricas de componentes essenciais, como ânodos, cátodos e eletrólitos. Esse domínio estende-se à origem das matérias-primas: companhias chinesas mantêm participações estratégicas em minas de lítio, níquel e cobalto em países como Indonésia, Austrália e Argentina, consolidando sua influência sobre os elos mais sensíveis da cadeia global de baterias.
Uma ilustração da reação dos Estados Unidos frente à crescente dependência global da China no setor de minerais críticos pode ser observado na criação do Minerals Security Partnership, lançada em 2022. Reunindo aliados estratégicos como União Europeia, Japão, Canadá, Austrália, Coreia do Sul, Reino Unido, Noruega, França e Alemanha, com a busca de garantir o fornecimento de minerais como lítio, cobalto, níquel, grafite e terras raras - refletindo uma estratégia geopolítica coordenada para reduzir a dependência das cadeias de suprimento dominadas pela China.
Essa realidade impõe um dilema estratégico aos Estados Unidos. A imposição de tarifas sobre produtos chineses não parece capaz de conter o avanço de um setor altamente integrado, no qual a China detém controle não apenas da manufatura, mas também da inovação, da logística e das matérias-primas. O caso das baterias, portanto, sintetiza a essência do atual embate: mais do que uma disputa comercial, trata-se de uma luta pela primazia em indústrias que moldarão a ordem internacional nas próximas décadas.
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