A literatura acerca das relações sino-moçambicanas tem enfatizado o protagonismo chinês em Moçambique a partir da década de 1960, especialmente quando a China forneceu suporte militar à Frelimo na luta pela libertação nacional e posteriormente na intensificação da cooperação ao longo dos anos 2000. Entretanto, os indícios da presença chinesa no território moçambicano antecedem o século XX e remonta ao século anterior (XIX), com a chegada dos primeiros coolies que se estabeleceram na Ilha de Moçambique para a construção das primeiras infraestruturas coloniais, e que, gradualmente, dispersaram-se e começaram a estabelecer pequenos comércios, sobretudo nas cidades de Maputo e Beira. [1] Essa trajetória sublinha que, mesmo antes do estabelecimento formal de relações diplomáticas entre os dois Estados, que ocorreu em 1975 e deu a China a posição de primeira nação a reconhecer a soberania de Moçambique, já existiam interações e diáspora chinesa desenvolvidas no país.
Uma possível explicação para a menor visibilidade acadêmica da presença chinesa no século XIX pode residir no foco predominante que tem sido dado nas dinâmicas sino-moçambicanas no contexto da Guerra Colonial e da cooperação no século XXI. Entretanto, embora uma reavaliação dessa historiografia possa oferecer insights valiosos sobre a complexidade, o objetivo deste trabalho não é aprofundar o debate sobre este tema, mas sim problematizar a construção, a evolução e os desafios desse relacionamento levando-nos a uma compreensão mais abrangente das relações sino-moçambicanas, as suas nuances e as interesses manifestados pelos dois atores ao aprofundar os laços econômicos, diplomáticos e históricos.
De fato, as relações sino-moçambicanas são caracterizadas por sua longevidade, por períodos de altos e baixos quando aproximam-se e distanciam-se. Apesar disso, demonstram uma robustez, que combina compromisso, prudência e cautela. [2] Embora a China tenha expressado interesses em estabelecer relações diplomáticas com Moçambique em 1975, o primeiro acordo bilateral entre os dois países foi assinado em 1976, onde previa o início das missões médicas em Moçambique. No entanto, em 1979, incidentes diplomáticos acabaram por esfriar as relações entre os dois países e paralisaram, ainda que temporariamente, a cooperação que se havia estabelecido.
Após Moçambique condenar a invasão chinesa no Vietname na Organização das Nações Unidas e posicionar-se contra a condenação soviética à invasão no Afeganistão, o descontentamento com a postura moçambicana fez a China, em 1979, retirar o seu embaixador de Maputo e levar consigo os médicos chineses que atuavam no país. Uma indicação de restabelecimento das relações ocorreu em 1982, após a visita de Joaquim Chissano a Beijing e a ajuda oferecida, em 1983, numa das mais dramáticas inundações que assolou Moçambique. [3]
A partir do início dos anos 2000, observa-se uma dinâmica crescente nas relações sino-moçambicanas. Diversos acordos de cooperação econômica foram fincados, relevantes projetos chineses de construção, infraestrutura, transporte e comunicação foram implementados em larga escala em Moçambique e lhe proporcionaram acesso a empreendimentos mais modernos, que trazem desenvolvimento econômico e reconstroem infraestruturas perdidas pelos anos de guerra. Prédios governamentais, pontes que ligam cidades, estradas, aeroportos, escolas e centros tecnológicos de agricultura são alguns exemplos dos diversos projetos financiados e/ou construídos por chineses e empresas chinesas.
A cooperação humanitária caracterizada pelo envio de médicos e professores chineses, fornecimento de medicamentos, equipamentos cirúrgicos, treinamento de equipes médicas e profissionais da educação moçambicanos e mais recentemente assistência médica fornecida aos residentes moçambicanos pelo Navio Hospitalar da Marinha de Guerra chinesa não é apenas um componente, mas constitui um pilar fundamental no pacote de ajuda oferecido por Beijing.
A tendência com o passar dos anos é que Moçambique e China fortaleçam este vínculo. Os laços bilaterais ganharam força com a elevação do estatuto da relação entre a China e Moçambique para o de uma parceria estratégica abrangente. Desde 2016, quando Xi Jinping afirmou que os dois países eram “bons irmãos” e “bons amigos, apoiando-se mutuamente”, bem como “bons parceiros em busca do desenvolvimento comum” e Filipe Nyusi deixou claro o agradecimento ao apoio prestado pela China e garantiu que seu país está disponível para reforçar os laços e acolher mais investimento chinês, o mundo testemunhou a assinatura de uma série de acordos de cooperação bilateral nos domínios comercial, econômico, agrícola, social e no setor da energia.
Mais recentemente o jornal O Económico, um dos portais com notícias de economia e empresarial focado em Moçambique, destacou o encontro entre Nyusi e Xi Jinping onde os dois reafirmaram a cooperação estratégica entre os seus países numa altura em que Beijing reformula o perfil das relações em África. Embora Beijing comece a repensar a sua estratégia de política externa para o continente africano, no contexto sino-moçambicano, os presidentes destacaram a importância da manutenção do bom relacionamento, que foi considerado frutífero e estratégico, e asseguraram o compromisso em aprofundar a cooperação bilateral nas áreas em que a China já coopera e abrir espaço para promover a cooperação em novos setores. Embora as autoridades chinesas e moçambicanas destaquem a continuidade, é fundamental investigar em que medida o aprofundamento do relacionamento sino-moçambicano se traduzirá em práticas concretas e quais os verdadeiros ganhos para ambas as partes.
Francisca Reino, delegada de Moçambique no Fórum de Macau, também enalteceu o papel crucial desempenhado pela China no desenvolvimento dos setores de infraestrutura, agricultura, indústria e turismo de Moçambique. O jornal eletrônico português CMJornal (2024) salientou a fala de Nyusi, onde o presidente moçambicano não só exaltou a disponibilidade da China em ajudar seu país, mas sugeriu que Moçambique deve encontrar na experiência chinesa um bom exemplo a ser seguido para alcançar o desenvolvimento. "Queremos saudar os avanços económicos não só de Xangai, mas também de toda a China, as políticas do Presidente Xi Jinping dão-nos força e liberdade para o desenvolvimento".
A participação de Moçambique nos fóruns chineses, nomeadamente o Fórum de Macau e o FOCAC (Forum on China-Africa Cooperation), e a sua assinatura no Memorando de Entendimento onde o país adere à Iniciativa Cinturão e Rota, em 2018, configuram a postura e o compromisso moçambicanos em ter as relações com a China mais próximas e extrair os benefícios que esta pode lhe trazer. O Fórum de Macau, criado em 2003, é um mecanismo multilateral focado especificamente nas relações entre a China e os países de língua portuguesa, estabelecendo Macau como ponte entre esses países devido, sobretudo, ao compartilhamento da memória cultural e histórica do passado colonial comum entre eles, seu objetivo principal é promover o comércio, o investimento e a cooperação económica entre seus membros. Por sua vez, o FOCAC, criado em 2000, é um mecanismo de cooperação que tem o objetivo de aprofundar as relações e a cooperação sino-africana. Entretanto, funciona de forma mais ampla ao abranger quase todos os 54 estados africanos e atuar de forma mais diversa em dimensões que incluem a cooperação política, económica, de segurança, cultural e de desenvolvimento. A Iniciativa Cinturão e Rota, por outro lado, configura-se como uma iniciativa global cujo objetivo é promover a conectividade entre a China e as outras economias ao redor do globo através do financiamento e construção de infraestruturas necessárias para facilitar as relações comerciais com esses diferentes atores.
São três iniciativas com características distintas mas que se complementam e atuam no sentido de aprofundar os laços sino-moçambicanos, e beneficiam Moçambique dados os volumosos projetos chineses construídos, como por exemplo a construção da ponte Maputo-Katembe avaliada em 700 milhões de dólares, o Aeroporto Internacional de Maputo (75 milhões de dólares) e o mais recente Centro Cultural Moçambique-China (70 milhões de dólares). Para além disso, o país pode tirar proveitos de uma maior integração na comunidade internacional, ampliar e diversificar o leque de Estados-parceiros e doadores internacionais. No entanto, apenas a participação de Moçambique nesses mecanismos não assegura a maximização de seus benefícios. Pelo contrário, os ganhos oriundos dessa parceria devem ser minuciosamente analisados pelas entidades governamentais, mais especificamente os formuladores de política de Moçambique, através das dimensões política, geoestratégica e econômica.
Politicamente, o bom relacionamento e o passado histórico compartilhado garantem que Beijing consolide uma boa imagem no continente africano no que diz respeito à prática de política de boa vizinhança, ajuda a reduzir a dependência dos países ocidentais (que historicamente produziram relações assimétricas e de natureza imperialista e condicionantes que limitavam a soberania do país), solidifica o posicionamento de solidariedade, respeito, amizade e benefícios mútuos com os países em desenvolvimento. Com isso, a China garante uma presença mais ativa na comunidade internacional, ganha mais espaço, reconhecimento e projeção. Embora não seja pioneiro nas relações entre China e África (sendo esta posição conferida ao Egito), as boas relações construídas com Moçambique podem ser utilizadas pela China como elemento-chave para atrair outras nações africanas para o convívio diplomático.
Em termos geopolítico e geoestratégico, estar cada vez mais alinhado com o continente africano mitiga o risco de isolamento internacional da China (como aconteceu após o dito Massacre na Praça Celestial, Tiananmen), prevenir o acirramento das tensões do entorno geopolítico chinês que podem minar a sua integridade territorial (à luz das questões relacionadas à Taiwan e a disputa territorial do Mar do Sul da China). [4] Assim, garantir o apoio de Moçambique e de outras nações é uma forma de diminuir riscos potenciais de invasões ao seu território e de isolamento diplomático (Moçambique além de ser integrante das Nações Unidas, é também membro de importantes fóruns regionais, como a SADC (Southern African Development Community), a União Africana, e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Com relação à dimensão econômica, o potencial de Moçambique enquanto fornecedor global de matérias-primas e recursos energéticos torna esta nação um parceiro valioso para os olhos de Beijing. A descoberta de reservas de gás natural e de carvão mineral, a iminência da exploração de gás de Rovuma, a abundância em terras para agricultura, a presença de minerais, de metais e de outras pedras preciosas fundamentais para a China em ascensão asseguram o abastecimento de fontes essenciais para comercializar os produtos manufaturados chineses e a manutenção do seu crescimento econômico. [5]
Outro ponto relevante diz respeito à posição estratégica de Moçambique. Localizado na costa oriental da África, o país é importante como conexão de hinterland (o termo está aqui associado a um país que possui uma rede de infraestruturas e serviços que o capacitam a transportar uma mercadoria do seu porto, por exemplo, a centros urbanos que não possuem ligação com o mar, e o faz pela via terrestre - rodovias e ferrovias). Através dos corredores logísticos que o conectam ao interior da África, a entrada de produtos chineses no continente africano é feita pelos principais portos do país (Portos de Maputo, Beira e Nacala). Entende-se, portanto, que Moçambique tem um papel essencial no escoamento de produtos chineses para o interior da África.
Embora autores reconheçam que os frutos das relações entre China e Moçambique nem sempre são positivos (devido às críticas sobre questões ambientais, descumprimento das leis trabalhistas, desvalorização e desrespeito da mão de obra local), os benefícios resultados do esforço da cooperação sino-moçambicana são inegáveis, na medida em que Moçambique se beneficia de investimento em setores que investidores tradicionais não apostam por considerá-los com risco elevado ou devido à fragilidade da economia moçambicana para honrar a garantia dos contratos. [6]
Por outro lado, não significa dizer que os desafios são inexistentes. Se Moçambique deve se preocupar em transformar o crescimento econômico em desenvolvimento sustentável e inclusivo, diversificar e descentralizar o investimento chinês no país, combater à corrupção e atividades ilegais e fortalecer a governança, a China tem de enfrentar as críticas recebidas dos países ocidentais tais como o título de neocolonizador, o pouco aproveitamento da mão de obra local nas construções chinesas e a má qualidade dos produtos entregues no continente. [7]
Finalizando, cinquenta anos de construção, renovação e intensificação das relações sino-moçambicanas devem ser analisadas de forma cuidadosa e crítica. É inegável que o estreitamento das relações sino-moçambicanas trouxe significativos resultados para Moçambique, particularmente no que se refere à modernização de infraestruturas e no acesso a financiamento para projetos de desenvolvimento, antes ignorado pelo Ocidente. No entanto, tem-se também de reconhecer que a China (e nenhuma outra nação) age sem levar em consideração os seus interesses. Moçambique não é apenas um receptor de investimentos e doações, é um fornecedor de recursos estratégicos fundamentais para a continuação do crescimento e desenvolvimento econômico chinês, desempenha um papel importante no seio da cooperação Sul-Sul ao mostrar para potenciais parceiros os laços históricos e a relação harmoniosa experienciada entre as nações. Estes, por sua vez, podem ser influenciados a juntar-se à grande comunidade que a China está formando no cenário global e com isso fortalecer a posição de Beijing a nível internacional.
Mas para que Moçambique consiga extrair o máximo de benefícios dessa parceria, é importante que o país aprenda as lições deixadas pelo seu passado colonial e não reproduza as mesmas relações assimétricas que levaram à exploração, à dependência e ao condicionamento do seu desenvolvimento. É crucial que os formuladores de políticas públicas moçambicanos criem estratégias e utilizem sua capacidade negocial de forma a garantir uma cooperação que reflita no equilíbrio de interesses entre a China e Moçambique. O futuro das relações Sul-Sul, sob o discurso de promover o desenvolvimento equitativo, dependerá também da coragem e dos esforços de nações como Moçambique em defender seus interesses nacionais e garantir que seu papel na comunidade internacional seja mais do que apenas um fornecedor de matérias-primas.
Fotografia: Samuel J. Tacuana, Pexels
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