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Ser fã faz parte da vida de todos. Sejamos nós mesmos os aficionados, seja aquela amiga que idolatra um determinado grupo, seja um tio devotado a tal jogador de futebol, seja um pai que adora certo cantor, seja uma sobrinha que segue uma grande influenciadora. As estrelas clássicas do cinema preto e branco também recebiam presentes, eram capas de jornais e tinham suas vidas pessoais acompanhadas como capítulos dos folhetins que elas mesmas estrelavam.
Um dos maiores fenômenos do tipo, a Beatlemania, que data da década de 1960 e foi retratada tantas vezes em livros e documentários, tornou-se o padrão pelo qual se mede o nível de histeria que o ícone da vez traz. Em geral, esse afeto nasce na adolescência, época de emoções exacerbadas e de necessidade de pertencimento; por isso, fazer parte desse grupo, ou fandom, sentir-se compreendido pelo trabalho de tal artista ou por sua personalidade (aquela apresentada ao público, não podemos nos esquecer) permite um engajamento fortíssimo por parte daqueles que seguem fielmente seu ídolo. E, se tem algo que manda no mundo que vivemos, de redes sociais, de publicidades, de live streams, de algoritmo e de entrega, é o engajamento.
Engajamento é lucro. É o que as marcas buscam e onde os grandes contratos estão, já que salários em emissoras, plataformas de streamings, gravadoras e produtoras é bem menor que um bom contrato com uma marca de beleza, por exemplo. Além disso, o modelo contratual por obra lançada é extremamente popular, gerando mais liberdade aos artistas, mas, em troca, menor estabilidade profissional. Tornar-se embaixador(a) de algum produto ou de alguma marca é a melhor forma de enriquecer para as celebridades, além de gerar credibilidade, agregar valor a sua marca pessoal e criar interesse de outras marcas. Um exemplo interessante disso é o grupo de K-Pop feminino Blackpink.
Engajamento é lucro. É o que as marcas buscam e onde os grandes contratos estão, já que salários em emissoras, plataformas de streamings, gravadoras e produtoras é bem menor que um bom contrato com uma marca de beleza, por exemplo.
Fenômeno mundial, tendo feito um crossover muito bem sucedido para o mercado ocidental junto ao grupo de K-Pop masculino BTS, as quatro moças lotam estádios pelo mundo inteiro, esgotam pré-vendas de todos os seus álbuns e são, individualmente, embaixadoras de marcas de luxo e de grandes maisons de alta costura, como Chanel, Yves Saint Laurent, Céline e Dior. Ao ser abordada, a gerência do grupo decidiu, por perfil e persona construídos, qual das integrantes abraçaria qual maison, e, assim, elas estrelam individualmente campanhas e levam um respiro novo para as marcas, criando objetos de desejo para seus fãs extremamente engajados, conhecidos como blinks, e agregando valor ao próprio grupo, o que eleva a marca Blackpink ao status de quase uma onipresença mundial.
O Blackpink, o BTS e muitos outros grupos, cantores e atores asiáticos que estão no auge de suas carreiras são frutos da chamada indústria de ídolos. Nascida na Coreia do Sul, essa indústria tem como importantes figuras, dentre outras, as produtoras que investem em recrutar jovens com aptidões artísticas na pré-adolescência ou no início da adolescência para treiná-los incessantemente durante uma média de cinco anos, eliminando aquelas pessoas menos aptas ao longo do tempo e testando formações e formatos, até que estejam prontas para serem apresentadas ao mundo.
As condições às quais esses jovens, chamados trainees, são submetidos trazem por si só muita polêmica; por exemplo, há a proibição estrita de relacionamentos amorosos, bem como pesagens e avaliações semanais que podem levar à eliminação do programa. Somados, esses detalhes geram uma pressão enorme a esses trainees tão jovens e afastados dos seus ambientes familiares, já que uma das condições para ser admitido aos programas é se mudar para as instalações oferecidas pelas produtoras, sejam elas onde forem. O sonho do estrelato enche os olhos de muitos jovens que sonham e lutam arduamente por seu lugar na indústria.
Na indústria de ídolos, a competição é voraz. Para compensar o investimento das produtoras, muitos jovens são lançados em diversos formatos ao mesmo tempo e buscam tornar-se relevantes, ascendendo em suas carreiras. Esse formato, liderado pelas produtoras, é mais comum na Coreia do Sul, mas é replicado em vários países da Ásia. Na China, como não poderia deixar de ser, o maior vetor para novos talentos é diferente: são os bons e velhos programas de calouros, muito comuns na cultura chinesa, utilizando formatos internacionais, como o The Voice, ou criando seus próprios, como o Youth With You. Outro diferencial é que muitos desses programas não passam só em canais de TV, mas também em plataformas de streaming, como o Youku e o iQIY.
Independentemente do processo que os levou ao sucesso, os fandoms são essenciais para fazê-los decolar. Há uma corrida entre os entusiastas desse tipo de ídolo, para encontrar o próximo grande astro, incentivá-lo desde o início, divulgá-lo e até se tornar conhecido pelo mesmo por estar lá desde sempre. Os fandoms são fundamentais para a construção da relevância de qualquer ídolo, e os candidatos à fama sabem disso; assim, nutrem essa oportunidade com toda a sua disponibilidade. Criam e mantêm uma persona, alimentando-a diariamente com postagens em redes sociais, encontros presenciais e apresentações em live stream. Vale notar que essas postagens, muitas vezes, são feitas pela gerência dos artistas na plataforma Weibo, o "Twitter chinês", e os compromissos são agendados entre gravações de novelas, presenças em eventos de marketing e até voos para outras cidades. Logo, muitos fãs passam seus dias seguindo seus ídolos e indo atrás deles, tirando fotos, fazendo vídeos para alimentar contas de fãs nas redes sociais e entregar presentes.
Ser fã é apoiar o trabalho de alguém. É identificar-se com essa pessoa em algum nível. É acreditar em seu talento. Quando um ídolo se aproveita dessa paixão, essa pode ser considerada uma atitude antiética, mas agora, na China, parece ser algo além: talvez vá até mesmo contra a lei.
A crescente obsessão com os ídolos resulta em regras das produtoras, por vezes, não escritas para eles, mas constantemente seguidas, como a ausência de relacionamentos amorosos públicos. Um boato ou uma foto mal interpretados podem gerar um cancelamento, seguido por uma debandada de fãs. Além disso, envolver-se com fãs é extremamente mal visto, já que existiria um abuso de poder do ídolo por estar com alguém muito vulnerável.
No que concerne a relacionamentos, em geral, apenas quando o próximo passo é o casamento é que se assume alguém. O interessante é que não apenas cantores e atores sofrem com esse ponto. Com o crescimento dos e-sports, as equipes de atletas dos games também são perseguidas, e seus relacionamentos são acompanhados com uma lupa. Ser fã tornou-se um comportamento tão parte da sociedade chinesa que já foi retratado em diversas novelas do país (conhecidas como C-Dramas), sendo a mais recente “Falling Into Your Smile”, que conta a história de uma equipe de e-sports.
Promessas de casamento não cumpridas por anos a fio, namorados e namoradas escondidos e até aliciamento de menores têm vazado nas mídias chinesas, seguidos de cancelamentos em massa de fãs e de marcas. No fim, essas situações trazem à tona discussões relacionadas ao feminismo, que utilizam uma hashtag similar ao #MeToo, já que esta é banida das plataformas digitais na China. A vulnerabilidade dos fãs diante dos seus ídolos - a maioria adolescentes - virou até caso de polícia recentemente. Kris Wu, um cantor e ator canadense de descendência chinesa, foi preso em agosto de 2021 após denúncias de assédio, abuso sexual e relacionamento com menores. Ele foi preso e encara, agora, um processo complexo, pois há várias testemunhas e prints contra ele, ao mesmo tempo que foram registradas tentativas de suborno e de coerção para calar as vítimas.
No início de 2021, o Youth With You, transmitido pela iQIY e que forma grupos pop femininos e masculinos, foi cancelado no meio da temporada por conta de comportamentos impróprios de fãs. Para votar no candidato que a pessoa torcia, era necessário adquirir um leite da marca de um dos patrocinadores, e rapidamente surgiram fotos e vídeos de grupos enormes de fãs despejando o leite no lixo, no chão, no bueiro, e depois votando incessantemente. Para um país em que a fome foi tão presente na sua história de forma recorrente, em que a comida é sinônimo de conforto, paz e prosperidade, e em que tem havido crescente preocupação com o desperdício de comida (inclusive, com o lançamento, em agosto de 2020, da campanha "Clean Plate"), tais cenas foram encaradas com horror. Mesmo sendo um show que contava com mentores famosos, com milhões de acessos e com muitos patrocinadores de peso, o show foi tirado do ar, sem previsão de retorno.
Diante de tantas polêmicas, o governo chinês criou, no mês passado, uma portaria de regulamentação de atividades de fãs. A Comissão de Assuntos Cibernéticos impôs regras para plataformas digitais e para produtoras de ídolos que vão desde o banimento de listas de ranking de celebridades e restrições à criação de contas e postagens sobre artistas até a proibição de votos em shows de talentos e afins, feitos mediante pagamento, como o caso do leite no Youth With You. Tais medidas visam a diminuir a atividade online de grupos que se organizam em campanhas financeiras de apoio aos seus ídolos, criar e espalhar mentiras e cometer cyberbullying.
Ser fã é apoiar o trabalho de alguém. É identificar-se com essa pessoa em algum nível. É acreditar em seu talento. Quando um ídolo se aproveita dessa paixão, essa pode ser considerada uma atitude antiética, mas agora, na China, parece ser algo além: talvez vá até mesmo contra a lei.
Carla Viveiros é analista editorial na Observa China, Ademais, é jornalista, profissional de marketing, pesquisadora cultural e produtora de conteúdo.
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