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O obscuro na arte e nos modos de ver

O obscuro na arte e nos modos de ver

O caso de 玄 xuan em Hu Liu

《Sinóptica 提纲》杂志

2025年12月12日
Caterina Paiva

Há encontros com obras de arte que não se esquecem, não por causa do impacto imediato, mas pela persistência silenciosa com que se instalam em nós. Foi assim que me deparei, no verão de 2021, com a obra de Hu Liu 胡柳, artista chinesa cuja linguagem visual me obrigou a reaprender a ver. A exposição em causa, intitulada Trees, estava patente no _Power Station of Art+, em Shanghai — um espaço dedicado à arte contemporânea. O tema era aparentemente simples: “árvores”. Contudo, entre pinturas, vídeos e instalações, rapidamente se tornava claro que cada artista tratava essa figura primordial à sua maneira — como símbolo de vida, memória, solidão, ecologia ou pertença.

Imagem 1 Hu Liu 胡柳. [1]

No meio desse conjunto de narrativas visuais, as três pinturas de Hu Liu destacavam-se com uma presença quase silenciosa, quase impossível de traduzir. Executadas apenas a lápis de grafite sobre papel, ocupavam as paredes como superfícies negras, densas e magnetizantes. À distância, pareciam blocos de sombra. De perto, porém, e apenas com um certo tipo de olhar — aquele que hesita e demora —, algo começava a emergir. Movendo o corpo ligeiramente, acompanhando a incidência da luz, percebia-se que por baixo daquela escuridão total havia árvores. Árvores minuciosas, ocultas no brilho do grafite, que só se revelavam quando o olhar contrastava com a luz que vinha por cima.

Imagem 2 Flores de pessegueiro no Templo Lápis em papel. 2010 Foto tirada pela autora

Imagem 3 Na Floresta de Bamboo Lápis em papel. 2012 Foto tirada pela autora

Imagem 4 Cinco Salgueiros Lápis em papel. 2020 Foto tirada pela autora

A sensação era de descoberta, mas também de desconcerto. Como se a pintura desafiasse a própria ideia de ver: o que parecia ser um “nada” negro continha, afinal, um mundo inteiro. Mais tarde, soube que Hu Liu chamava a esse negro xuan 玄 — um termo chinês de difícil tradução, que pode significar “escuro”, “profundo”, “misterioso”, ou até “oculto”.

Xuan é um conceito antigo, central na filosofia daoísta, e surge logo no início do Dao De Jing 道德经, de Laozi, num dos versos mais citados e enigmáticos:

Xuan em xuan: a porta de entrada para as maravilhas. 玄之又玄,众妙之门。 (Capítulo 1)

Na entrevista concedida à revista NeoCha, intitulada Darkness upon Darkness, Hu Liu explica: “As minhas obras não são pretas. São xuan.” Essa distinção aparentemente simples abre todo um universo. O preto, em muitos dos nossos contextos nativos, tende a ser o fim: ausência de cor, limite do visível, símbolo do vazio ou da morte. Já o xuan propõe algo diferente — o princípio, o lugar onde as formas ainda não se separaram, onde tudo permanece em potência. Não é o nada, é o ainda-não.

Hu Liu estudou pintura tradicional chinesa durante vários anos e interessou-se profundamente pelas paisagens da dinastia Song, época em que o pictórico era inseparável do pensamento cosmológico. Na pintura Song, o traço não descreve o mundo: participa dele. A tinta e o papel não são suportes, são elementos vivos, atravessados pela mesma energia — o qi 气— que anima montanhas e rios. Quando, a partir de 2013, a artista decide eliminar todas as cores e concentrar-se exclusivamente no lápis preto, não é uma renúncia estética: é uma escolha filosófica. As pinturas de Hu Liu não são representações de escuridão, mas experiências da visibilidade. Elas obrigam o espectador a mover-se, a adaptar-se, a aceitar que o que vê depende do modo como se posiciona. O sentido da obra não está dado — é um processo.

É aqui que o xuan se revela não apenas como tema, mas como método. O saber do xuan não é o saber racional, é o saber da experiência — aquele que só se atinge através da imersão no indeterminado. Nelas, tudo está contido e nada é plenamente revelado. O grafite, aplicado camada sobre camada, acumula-se como tempo condensado. O gesto repetido torna-se meditação. A força desta obra está em transformar um conceito filosófico milenar numa experiência sensorial imediata. O espectador não precisa conhecer Laozi. O xuan manifesta-se no modo como o corpo se desloca, na paciência que o olhar precisa de adquirir, na humidade do ar que parece pairar sobre o papel. É uma estética da atenção e do silêncio. A arte de Hu Liu parece propor uma crítica silenciosa às tradições modernas, que durante séculos associaram luz a conhecimento e sombra a ignorância. Hu Liu inverte essa hierarquia: o escuro é o lugar onde o pensamento começa, não onde termina.

Essa inversão ecoa uma sensibilidade cada vez mais presente na arte contemporânea chinesa, onde muitos artistas revisitam conceitos filosóficos clássicos para questionar o presente. Casos internacionalmente conhecidos são Xu Bing 徐冰, Qiu Zhijie 邱志杰 e Cai Guoqiang 蔡国强. No caso de Hu Liu, não se trata de nostalgia nem de exotismo. O seu trabalho não “representa” o daoísmo; ele tenta encarná-lo. É uma arte que não busca comunicar uma mensagem, mas gerar uma experiência de presença, partindo assim, da interpretação do clássico chinês pela artista.

É precisamente aí que reside a atualidade do xuan: num mundo saturado de imagens, onde tudo se quer visível e imediato, esta arte convida-nos a abrandar e a permanecer. Talvez o verdadeiro gesto contemporâneo seja este: o de devolver ao olhar a sua lentidão. O de aceitar que há conhecimento na penumbra. O de compreender que a escuridão — como o próprio dao — não é ausência, como outros autores como Byung-Chul Han pretendem passar, mas potencial.

No plano mais amplo da diplomacia cultural, compreender esta outra maneira de lidar com o mundo sensorial — em que o invisível, o silêncio e a espera são também formas de conhecimento — é reconhecer a heterogeneidade viva dos modos de saber. Esses saberes não se organizam em blocos culturais fixos, mas emergem de processos de interpretação, tradução e reinvenção contínua. O xuan, com a sua recusa do imediato e a sua valorização do indeterminado, recorda-nos que o conhecimento não se esgota em fronteiras geográficas ou epistemológicas. A diplomacia cultural, nesse sentido, deixa de ser um diálogo entre entidades homogéneas e torna-se um campo relacional de escuta, onde os gestos de perceber, traduzir e imaginar abrem espaço para reconhecer a pluralidade dos modos de existir — não como diferenças a conciliar, mas como camadas em constante metamorfose do mesmo tecido humano.

Referências

  1. Fondation Cartier pour l’art contemporain, Hu Liu | Collection of the Fondation Cartier pour l’art contemporain, s.d.

Fotografia: Caterina Paiva

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Alessandra Lemos
Alessandra Lemos

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