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O que torna uma prática “Chinesa”?

O que torna uma prática “Chinesa”?

Reflexões e provocações a partir da cultura do chá

《Sinóptica 提纲》杂志

2025年12月12日
Thiago Braga

Em 2023, a China celebrou a inscrição da montanha Jingmai, localizada na região fronteiriça da província de Yunnan, na lista de Patrimônios Mundiais da UNESCO, o primeiro sítio cultural cuja presença na lista se dá exclusivamente pela produção de chá. A elevação de Jingmai ao status de patrimônio mundial é acompanhada de outras iniciativas nas quais o chá é apresentado como uma herança cultural chinesa. Por exemplo, desde 2018 o governo chinês vem promovendo o conceito de “Diplomacia do Chá de Xi Jinping” (茶外交 cha waijiao), no qual o chá simboliza uma abordagem diplomática chinesa baseada em noções de hospitalidade e harmonia, uma espécie de outro lado da moeda vis-à-vis a combativa “Diplomacia do Guerreiro Lobo” (战狼外交 zhanlang waijiao). Ademais, em 2024, o departamento central de propaganda do Partido Comunista Chinês estabeleceu o “Programa de Comunicação Global do Chá Chinês” (中国全球茶转播 zhongguo quanqiu cha zhuanbo), com a missão de propagar a “cultura tradicional do chá chinesa” no palco internacional. Em tempos recentes, portanto, o consumo de chá é posicionado cada vez mais como uma atividade “tradicionalmente chinesa,” cuja projeção internacional e doméstica adquire crescente importância no presente momento de ênfase em slogans como “Autoconfiança Cultural” (文化自信 wenhua zixin) e “Construir uma Sociedade Civilizada” (建设文明社会 jianshe wenming shehui).

Porém, as iniciativas descritas acima não marcam o início, mas sim um novo momento de um projeto de “revitalização” (复兴 fuxing) da cultura do chá chinesa iniciado na década de 80. Talvez mais surpreendente seja o fato de que esse projeto não foi iniciado da China continental, mas sim em Taiwan. O presente texto propõe o seguinte argumento: se, por um momento, nos dispormos a problematizar a “essência cultural” do chá como “chinesa” e seguirmos a “vida cultural”, como afirma Appadurai, do chá através do Século XX, o que se verifica é que a “Chinesidade” (Chineseness) do chá não é um fato óbvio, mas sim o resultado de uma série de (re)configurações geopolíticas através das quais procedem as tensões entre a China continental e Taiwan. [1]

Brevemente: no período dinástico, o chá veio a simbolizar a subjugação da China aos poderes ocidentais. A sede britânica pelo chá chinês foi um dos principais fatores motivantes na Primeira Guerra do Ópio, onde a derrota chinesa marcaria o início do Século da Humilhação e o longo declínio da dinastia Qing. Com o estabelecimento do sistema de plantação de chá britânico na Índia—possibilitado pelo roubo de tecnologia e mão de obra chinesa no rescaldo do conflito—a China perdeu o monopólio na produção e venda internacional de chá. [2] Esforços para modernizar a indústria, durante a primeira metade do Século XX, se concentraram na província de Fujian, mas dadas as tribulações que a recém estabelecida República da China experienciava nesse período, tais esforços obtiveram sucesso limitado. [3] Com o estabelecimento da República Popular em 1949, grande parte dos agrônomos envolvidos nesse projeto cruzaram o estreito para Taiwan, onde a produção industrial de chá e instituições de pesquisa já haviam sido estabelecidas durante o período de ocupação japonesa (1895-1945).

É neste ambiente de Taiwan pós-guerra—isto é, no governo da República da China transplantado para a ilha de Taiwan após cinco décadas de ocupação japonesa e o estabelecimento da República Popular—que o chá, até então um produto primário (staple commodity) direcionada principalmente para a exportação, adquire o caráter de uma herança cultural chinesa. Esse processo não se dá por um motivo específico, mas se desenrola ao longo de três eventos simultâneos que o triangulam. Primeiro, a remoção de Taiwan das Nações Unidas e a eventual perda da condição de Estado com a reaproximação entre os Estados Unidos e a China na década de 70. Segundo, o Milagre Econômico Taiwanês (台湾奇迹 taiwan qiji), através do qual Taiwan viria a elevar a sua posição na divisão de trabalho internacional, tornando-se um dos quatro tigres asiáticos. Terceiro, e talvez mais importante, é a Renascença Cultural Chinesa, um movimento lançado pelo governo Kuomintang em resposta à Revolução Cultural iniciada na China. A Renascença Cultural tinha como objetivo a articulação e promoção da “cultura tradicional chinesa” em Taiwan como parte integral de um projeto conservador e etnonacionalista através do qual o governo Kuomintang “sinificou” (中华化 zhonghua hua) os povos nativos de Taiwan, e justificou ideologicamente o seu governo via lei marcial entre 1949 e 1987, um período que ficou conhecido como o “Terror Branco” (白色恐怖 baise kongbu). É neste contexto—marcado pela perda de conexões diplomáticas (que dificultaria a exportação), desenvolvimento econômico acelerado (que criou uma classe média), e promoção ideológica da “cultura tradicional chinesa” como estratégia de governança autoritária—que o consumo de chá se torna uma “prática tradicional” a ser “revitalizada” com o surgimento da “Arte do Chá Chinesa” (中华茶艺 zhonghua chayi). [4] Com a subsequente “febre Chinesa” (中国热 zhongguo re) em Taiwan, causada por uma breve aproximação com o fim da Guerra Fria, mestres do chá taiwaneses cruzaram o estreito, onde foram recebidos como protetores de uma cultura tradicional perdida, levando à popularização da Arte do Chá na República Popular.

Porém, a história não termina aqui. Junto com o fim do Terror Branco e a democratização de Taiwan veio o movimento de Taiwanização (台湾本⼟化 taiwan bentuhua), através do qual uma identidade cultural distintamente taiwanesa baseada no multiculturalismo é articulada. [5] A ascensão do Partido Democrático Progressista intensificou esse processo, e no decorrer do seu desenvolvimento, a identidade cultural da Arte do Chá em si foi transformada—não mais representativa da “Chinesidade monocultural” da República da China, ela passa a ser vista como uma prática emblemática da identidade multicultural de Taiwan, um receptáculo de diversas influências ao longo de uma história marcada por diferentes ocupações e projetos políticos.

Um exemplo dessa mudança pôde ser visto no pavilhão de Taiwan da Bienal de Arquitetura de Veneza de 2023, onde uma casa de chá construída com materiais recicláveis representou o país. Como disse a curadora-chefe do projeto, a arquiteta Fang Xin-Ciao, em uma entrevista: “nós criamos um espaço de chá porque Taiwan é uma entidade cultural diversa. Enquanto houver um espaço, nós podemos servir e apreciar chá, e discutir e experienciar a cultura de Taiwan.” O pavilhão também foi palco para uma performance intitulada “A Crioulização do Corpo", criada por Kuo Chin-yun, uma peça de arte performática onde dez membros da audiência são convidados para uma sessão de chá em silêncio. Ao ser entrevistada, Kuo diz utilizar o termo “crioulização” para se referir ao desenvolvimento da cultura do chá ao longo de diversas influências: chinesa, japonesa, e aborígene. Ela vê na cultura do chá taiwanesa contemporânea uma forma de “resistência à ortodoxia da singularidade” (单⼀性的正统 danyixingde zhengtong). Portanto, no período contemporâneo, aquilo que inicialmente era visto como uma prática quintessencialmente chinesa passou a ser visto como um símbolo que diferencia Taiwan como uma entidade nacional, cultural e social que não é definida (exclusivamente) pela chinesidade.

O que podemos concluir a partir desta breve análise da vida social do chá nas últimas décadas? Primeiramente, ela nos dá causa para pausar antes de chamarmos uma prática “chinesa”, pois essa designação não é um fato óbvio que antecede forças sociais e relações de poder. Ao contrário, é precisamente o desenrolar de complexas dinâmicas geopolíticas que conectam uma prática a uma designada identidade cultural. O consumo de chá diário, apesar de parecer mundano, faz parte daquilo que Allen Chun chama de “subjetividade dos processos geopolíticos”. [6] Por isso, a presente análise ensaia um contraponto à uma forma de “Sinoteoria” altamente em voga atualmente.

Essa tendência, representada pela tão-chamada “Nova Esquerda Chinesa” de Wang Hui, Wang Shaoguang e Zhao Tingyang, para citar alguns nomes, vê práticas como janelas para um núcleo civilizacional onde se encontra uma quase ontológica “Chinesidade.” Apesar de autodeterminação cultural ser muito importante, a “Nova Esquerda Chinesa” parte menos da premissa de combater o Orientalismo no sentido de Edward Said, do que de uma aberta admiração pela premissa do Choque de Civilizações de Samuel Huntington, sendo portanto menos um movimento pós-colonial e mais uma expressão de conservadorismo ideológico. [7] O que a breve análise da transformação da cultura do chá em Taiwan aqui traçada ressalta é que a ordem é, na verdade, o contrário: práticas culturais não são janelas para essências culturais civilizacionais. São as relações de poder, arranjos institucionais, e projetos de hegemonia local que estabilizam a identidade cultural das práticas. Portanto, as iniciativas referidas no primeiro parágrafo deste artigo não são o reconhecimento de uma culturalidade que já se fazia presente, mas sim movimentações que demonstram a inseparabilidade das contingências da cultura e das instrumentalizações da geopolítica.

Referências

  1. Arjun Appadurai, ed., The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective (Cambridge: Cambridge University Press, 1988).
  2. Andrew B. Liu, Tea War: A History of Capitalism in China and India (New Haven: Yale University Press, 2020); Sarah Rose, For All the Tea in China: How England Stole the World's Favorite Drink and Changed History (Nova Iorque: Penguin, 2010).
  3. 张天福 (Zhang Tianfu), 福建省茶叶科研机构和茶叶职业教育的历史资料 (Fujian Sheng Chaye Keyan Jigou he Chaye Zhiye Jiaoyu de Lishi Ziliao) (武夷山市档案馆 Wuyishan Shi Dang’an Guan, 1978).
  4. Em vez de “revitalizada,” o termo mais apropriado seria “inventada” no sentido da Invenção da Tradição à lá Hobsbawm. Como apontam pesquisas anteriores (Lawrence Zhang, “A Foreign Infusion: The Forgotten Legacy of Japanese Chadō on Modern Chinese Tea Arts,” Gastronomica 16, no. 1 (2016): 53–62; Shuenn-Der Yu, “Sense-Making in Taiwan's Tea Art Ritual,” Asian Journal of Social Science 50, no. 3 (2022): 229–35), o termo Arte do Chá (茶藝) não possui precedente histórico, e não corresponde a uma prática existente no período dinástico. Ao contrário, a Arte do Chá é o resultado de uma série de criações ad hoc, onde donos de casas de chá e curadores culturais taiwaneses livremente combinaram elementos chineses e japoneses sem direta referência clara à uma prática antiga.
  5. Como aponta ens Damm, “Multiculturalism in Taiwan and the Influence of Europe,” em European Perspectives on Taiwan, eds. Jens Damm e Paul Lim (Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften, 2012), o discurso multiculturalista em Taiwan foca-se em quatro grupos étnicos: Hoklo (福 佬), Hakka (客家⼈), Chineses Continentais (外⽣⼈) e Aborígenes (原住⺠).
  6. Allen Chun, “All under Heaven; or, The Evolving World Ethos of a New Greater China,” boundary 2 52, no. 1 (2025): 46.
  7. Para uma completa crítica nesta linha, veja Letian Lei, “The Mirage of the Alleged Chinese New Left,” Journal of Political Ideologies (2024): 1–22.

Fotografia: Carolina Souza

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Caterina Paiva
Caterina Paiva

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