Especial “Bicentenário da Independência do Brasil e Relações Sino-Brasileiras”

Entrevista com Daniel Veras e Evandro Carvalho

7 DE SETEMBRO DE 2022
Especial “Bicentenário da Independência do Brasil e Relações Sino-Brasileiras”

Pedro Steenhagen. O Brasil celebra, em 7 de setembro de 2022, o bicentenário de sua independência, e essa data é uma ótima oportunidade para fazermos um balanço desses últimos 200 anos, bem como para repensarmos os rumos do país em direção ao futuro. Um dos tópicos possíveis para reflexão nesse momento marcante, que tem o potencial de servir como catalisador para gerar debates de alto nível sobre variados assuntos de interesse nacional, é a parceria entre o Brasil e a China. Para começarmos a conversa, como vocês avaliam o histórico da relação sino-brasileira e o seu amadurecimento ao longo do tempo?

Evandro Carvalho. Primeiramente, penso que poderia ser interessante fazer um breve paralelo entre as histórias da China e a do Brasil ao longo desses 200 anos. Isso porque há pontos de contato indiretos entre essas histórias, que possuem similaridades de processos internos vividos por esses países em função de fatores externos.

Quando observamos o que foi o século XIX na China, com toda aquela intervenção estrangeira e com o estabelecimento de todos aqueles tratados desiguais, percebemos que o contexto geral começou a forçar a China a se inserir em uma nova dinâmica internacional com a qual ela não estava acostumada e a ingressar em um processo de adaptação a esse novo mundo que se desenhava à imagem e à semelhança da Europa. Se, por um lado, esse contato com o Ocidente foi causa de diversos conflitos na China, por outro, ele trouxe também elementos de avanço, como, por exemplo, uma melhora na estrutura das cidades portuárias controladas pelas potências ocidentais invasoras.

O Brasil viveu um processo similar, sobretudo com o avanço dos interesses britânicos no seu território, o que foi um fator importante no processo de independência do Brasil. Vale destacar que, nos séculos XVIII e XIX, a presença do Oriente no cotidiano das cidades brasileiras podia ser notada muito em razão das navegações portuguesas que chegavam em Recife e no Rio de Janeiro depois de passarem por Goa e por Macau. Isso é muito bem relatado por Gilberto Freyre em seus textos, quando ele faz uma reflexão sobre a influência do Oriente no Brasil e como essa influência se vai dissipando ou sendo substituída pela influência britânica, que, segundo ele, vai acinzentar a paisagem urbana brasileira, em substituição ao colorido que aqui havia em função dessas influências orientais.

Acho muito interessante quando o Gilberto Freyre faz essa declaração de que o Brasil se situava numa espécie de encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente, uma encruzilhada entre dois mundos, que acaba com a opção pela ocidentalização do país e com repercussões na própria estrutura das cidades, que substituem as ruas estreitas pelas avenidas largas, as janelas ao estilo mouro pelas janelas de vidro, e assim por diante. Depois, temos a própria influência dos Estados Unidos, assim como ocorre em todo o continente americano e mundo afora.

Daniel Veras. Sobre essa questão das influências chinesas no Brasil, podemos ver também a arquitetura colonial de Minas Gerais com certas influências chinesas. Na arte, vale lembrar que, em São Paulo, podemos ver leões funerários similares àqueles dos templos chineses. Temos, ainda, costumes como bater palmas ao entrar nas casas como algo em comum.

Sem dúvida, a relação sino-brasileira é antiga e data do período colonial. Os portugueses faziam essa conexão entre os continentes africano e asiático e o Brasil a partir de intercâmbios de ideias, de produtos, de pessoas, de arquitetura. É assim que chegam ao Brasil, por exemplo, o coco, o chá, a banana e o arroz, alimentos tidos como típicos da alimentação brasileira, mas que têm origem na Ásia.

O José Roberto Teixeira Leite e o Gilberto Freyre relatam muito bem as influências chinesas em nossos costumes e na nossa cultura, inclusive, pela via da imigração. O que mais surpreende hoje é que essas influências chinesas são ignoradas no Brasil e no mundo. Isso é reflexo do fato de que as relações sino-brasileiras costumam ser reduzidas ao fator econômico, sendo necessário resgatarmos nossas relações históricas para avançarmos em debates culturais e para aprofundarmos e complexificarmos a parceria entre os dois países.

Pedro Steenhagen. Essas interações históricas entre o Brasil e a China são mesmo muito interessantes e ainda relativamente pouco exploradas, particularmente no campo sociocultural e identitário. Nesse âmbito, em suas opiniões, quais são as semelhanças e as diferenças que mais se destacam nos processos de independência de ambos os países, em especial, no que concerne à libertação de amarras colonialistas e imperialistas, sejam elas visíveis, sejam elas ocultas?

Evandro Carvalho. É impressionante como a Europa, potência de então, sobretudo por causa dos avanços da Revolução Industrial no rastro das navegações, fez-se rica por meio de invasões de territórios, genocídios de povos inteiros e escravidão, deixando marcas e produzindo transformações profundas nos países considerados periféricos. Só que, no caso da China, vale dizer que ela não chegou a ser totalmente colonizada. Ela tornou-se uma semicolônia, até porque a influência estrangeira concentrou-se muito nas cidades costeiras onde havia portos, e, por isso, ela foi capaz de preservar muitas de suas características. A maior parte da população e do território chinês não ficou sob controle das potências estrangeiras, diferentemente do Brasil.

Dessa forma, o processo de independência, na verdade, ainda está em curso, tanto no Brasil quanto na China, quando pensamos na independência como sinônimo de soberania plena do povo sobre os destinos da nação e de afirmação de uma certa identidade nacional que não seja espelho daquela que potências estrangeiras impuseram ou tentaram impor. No caso da China, pode-se dizer que os chineses avançaram na direção da soberania e, agora, parecem fortalecer, cada vez mais, sua identidade nacional naquilo que é próprio do solo e da cultura da China.

Trata-se de um nacionalismo que não guarda total similaridade com o sentido do nacionalismo europeu, pois lá houve, na maior parte dos casos, primeiro a formação dos Estados, para depois se construir as identidades nacionais; por exemplo, primeiro veio a França, depois os franceses. Na China, a identidade chinesa, com toda a sua complexidade étnica, antecede a República Popular da China. Há outros temas envolvidos nessa questão da independência, tais como o ideal de revitalização da sociedade chinesa e a busca de um renascimento chinês, e isso não só está no discurso político chinês desde o final do século XIX, mas também se estende até os dias de hoje.

A revitalização da China coincide com a afirmação de sua soberania sobre o território e, sobretudo, com o ideal da Grande Harmonia (Dàtóng 大同). A independência da República Popular da China está a completar-se em função do seu processo de unificação territorial – inconcluso com a questão de Taiwan. No Brasil, não há situação similar a essa que vive a China, mas há um problema grave de construção de uma identidade nacional que aceite a contribuição dos povos originários do Brasil, que são completamente afastados e riscados desse processo de formação cultural, e a participação efetiva da população negra, descendente dos povos africanos que foram brutalmente escravizados.

Daniel Veras. Pensando nesses últimos 200 anos, passando os períodos de colônia e de império, o Brasil teve muitos desafios sociais que também foram enfrentados pela China. A realidade chinesa começa a mudar com a fundação da República Popular da China, em 1949, quando a China iniciou uma nova trajetória histórica. Em 1974, mesmo sendo governado por uma ditadura militar, o Brasil finalmente reconheceu a República Popular da China como a China legítima.

A partir daí, a relação sino-brasileira começou a florescer e a demonstrar que podia ser baseada em necessidades complementares. Na década de 1980, por exemplo, teve início uma cooperação tecnológica extremamente importante e que perdura até os dias de hoje, com o lançamento do primeiro Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS). Apesar de alguns avanços, até os anos 2000, ambos os países promoviam uma cooperação, de certa forma, adormecida, o que mudou ao fim dessa década. Em 2009, a China tornou-se o principal parceiro comercial, e, ao longo das décadas de 2000 e de 2010, surgiram os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o Fórum China-CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e outras plataformas de concertação relevantes no Sul global.

Agora, duas grandes amarras que ainda perduram, infelizmente, são o desconhecimento mútuo e os estereótipos difundidos. Enquanto a China está fazendo a sua parte, com mais de 50 universidades que ensinam a língua portuguesa em algum nível, o Brasil peca e não investe muita energia e muito recurso para conhecer mais a fundo o seu gigantesco parceiro.

Pedro Steenhagen. Esse último ponto sobre a língua portuguesa é curioso, muito me interessa e me faz refletir sobre as heranças lusófonas que Brasil e China compartilham, mas que são absolutamente ignoradas ou mesmo desconhecidas pela esmagadora maioria da população brasileira. É uma pena que, diferentemente do que ocorreu no centenário da independência, marcado por diversas atividades relevantes – como a Semana de Arte Moderna de 1922 – com notórias repercussões políticas e culturais no Brasil e no exterior, não estejamos tendo iniciativas à altura do atual momento histórico. Afinal, trata-se de uma ocasião para pensarmos também nossas relações com Portugal e com outros países ou regiões de língua portuguesa. Nesse contexto, como a Região Administrativa Especial de Macau pode contribuir para a crescente dinamização e valorização da parceria sino-brasileira?

Daniel Veras. A relação sino-brasileira, atualmente, não passa necessariamente por uma intermediação de Macau, até por ser um relacionamento muito focado em comércio e investimentos. Dito isso, Macau pode ser muito útil de duas formas: intensificar as trocas culturais, resgatando o passado histórico em comum; e contribuir para que as relações bilaterais avancem para além do econômico, dando mais qualidade à parceria Brasil-China e aproximando mais os países de língua portuguesa.

Sobre a relação entre Brasil e Portugal, a questão é mais complexa, porque não sei se ambos os países têm a mesma visão do que foi a independência e o empreendimento colonial por aqui. Para o brasileiro, o que fica é a invasão territorial, a exploração econômica, a escravização de povos africanos e indígenas. Por sua vez, parece-me que os portugueses ressaltam o caráter corajoso dos primeiros exploradores, a benevolência e a herança positiva da presença portuguesa, o período grandioso do país nas explorações marítimas. Sendo assim, parece haver uma diferença de percepção sobre o que foi o período colonial e a independência.

De qualquer forma, falar de independência e de descolonização é sempre necessário, até para tratarmos da relevância do mundo multipolar que se desenha e da aliança entre países emergentes no sistema internacional. Nesse sentido, Macau já tentou captar o mundo hispânico, indo além do universo meramente lusófono. Então, poderia até servir como uma plataforma mais abrangente para países de língua portuguesa e mesmo de língua espanhola.

Evandro Carvalho. Antes de dar continuidade à ótima linha de raciocínio do Daniel, preciso de concordar com você, Pedro, que é mesmo uma pena não aproveitarmos mais esta época do bicentenário da independência do Brasil. Isso ocorre, primordialmente, por causa do governo atual, que não tem apresentado nenhum tipo de agenda à altura da data. Podíamos estar discutindo esses 200 anos a partir de uma outra matriz, incluindo debates sobre a formação político-cultural do povo, sobre os problemas internos atuais, sobre as questões de identidade em um contexto de intensa fragmentação interna e, sobretudo, sobre a República.

O Brasil pós-1985 tem-se dedicado a disseminar uma cultura democrática, mas esqueceu completamente de desenvolver uma cultura republicana. Os poderes constituídos no Brasil – e isso vale para os três Poderes – atuam com pouco espírito republicano. Para completar, a democracia está sendo constantemente ameaçada. O governo atual contribui para esse processo de apagamento de debate e está de costas para o Brasil real, insensível diante dos quase 700 milhões de brasileiros mortos pela Covid-19 e para os 30 milhões que estão passando fome agora. Não há o que celebrar, mas há muito a se fazer para recuperar o país. A destruição da Amazônia e o assassinato dos povos originários é a prova de que o Brasil ainda não é um país nascido deste solo.

Então, se o atual governo brasileiro não olha nem mesmo para o Brasil real, tampouco terá qualquer tipo de visão para a construção de uma parceria com a China tendo em conta Macau, que é um ponto de contato relevante da China com o mundo lusófono. Isso é uma pena, porque Macau, embora não tenha mais a língua portuguesa presente de forma marcante na vida cotidiana dos seus cidadãos, é um símbolo importante da lusofonia e preserva sua herança cultural, inclusive o português como idioma oficial. O Brasil poderia aproveitar isso para intensificar uma via de diálogo com a China, utilizando Macau como uma ponte de diálogo, feita, inclusive, em parceria com Portugal.

Seria preciso de refletir sobre o significado de Macau na história de Portugal e como elementos chineses chegam até o Brasil. Essa discussão está inserida no grande debate sobre o que foi a presença portuguesa no Brasil nesses últimos 200 anos, e, principalmente, qual poderia ser a presença do Brasil na relação com Portugal e na relação com a China a partir de Macau e da lusofonia. A China teve a inteligência de não apagar a presença portuguesa em Macau e utilizar isso como um importante ativo diplomático, preservando os rastros históricos da presença portuguesa e construindo uma diplomacia com base na questão linguística.

É o caso do Fórum Macau, que é uma sinalização interessante que a China deu para os países de língua portuguesa e que o Brasil deveria saber aproveitar mais. Sendo o país de língua portuguesa mais forte economicamente e em termos populacionais, o Brasil poderia assumir uma posição de maior protagonismo nessa relação dos países de língua portuguesa com a China. A China não me parece contrária a esse tipo de desenvolvimento de agenda, e, mais uma vez, esse é um ponto de contato que poderia ser trazido no debate sobre os 200 anos de independência do Brasil para beneficiar a relação sino-brasileira. Macau poderia simbolizar aquela encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente no Brasil do final do século XIX, mas, agora, apontando para um futuro em que China e Brasil são duas importantes Repúblicas do Sul global. Macau tornou-se uma região extremamente próspera e vai crescer muito ainda. Acho até que, dentro de um relacionamento estratégico de longo prazo que o Brasil deveria ter com a China, Macau deve ser um ponto focal importante em sua política externa.

Pedro Steenhagen. Concordo totalmente com vocês. Em vez de apenas olharmos para os ganhos que já ocorrem, especialmente nos âmbitos comercial e financeiro, temos de aprender a identificar os benefícios que estão deixando de ser colhidos por causa dessa visão limitada da parceria sino-brasileira. Nesse sentido, Macau tem um imenso potencial – ainda pouquíssimo explorado no Brasil, particularmente no contexto da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) e da Área da Grande Baía – para alavancar essa relação a um novo patamar, aprofundando a cooperação em questões como transferência de tecnologia, sustentabilidade, políticas sociais e intercâmbio de pessoas. Aliás, retomando uma visão histórica e abordando este último ponto, para vocês, como a China deixou sua marca na história do Brasil durante esses 200 anos de independência? E qual foi o papel da imigração chinesa na construção do nosso país, inclusive, quando pensamos na vida político-econômica e sociocultural da sociedade brasileira hodierna?

Daniel Veras. Os portugueses faziam muitas conexões entre Ásia, África e Brasil. Na época em que o Brasil era uma colônia, já circulavam chineses no território brasileiro, e, no período imperial, foram trazidos chineses para que pudessem servir de mão de obra. Trata-se da iniciativa ou mão de obra coolie, que era relativamente barata e que servia como substituição da mão de obra escrava já legalmente extinta.

Essa iniciativa coolie acabou não indo adiante no Brasil. Apesar disso, em 1812, houve a icônica imigração chinesa, que começou incipiente com a vinda de chineses para o cultivo de chá e que ficou famosa pelas contribuições ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Em contrapartida, isso não representou o grosso da imigração chinesa no Brasil. Atualmente, temos cerca de 200 mil chineses no Brasil, sendo que mais ou menos metade dessas pessoas se encontram no Estado de São Paulo. A imigração chinesa no Brasil é pequena, se comparada com outros grupos no país, mas ela está em crescimento e pode ajudar a superar o problema da ignorância que existe sobre a China na sociedade brasileira, que é diversa e possui muitos descendentes asiáticos.

Quando se fala de imigração chinesa, em qualquer lugar do mundo, o predominante é a presença de pessoas da China meridional. Na época coolie, saíam muitos chineses de Hong Kong e de Macau também. Se olharmos o século XX, perceberemos que a China passa por momentos de abertura e de fechamento, e esses movimentos ajudam a explicar por que, em diferentes períodos, temos a imigração de mais chineses de uma região que de outra. Por exemplo, até 1950, recebíamos mais cantoneses, com chineses urbanos em busca de oportunidades. Entre 1950 e 1980, recebemos mais taiwaneses, que fugiam de toda a tensão existente no estreito. A partir daí, vemos que a emigração chinesa passa mais pela China continental, até pelas políticas de reforma e abertura.

Pode-se dizer que a imigração chinesa no Brasil tem três características gerais: é oriunda majoritariamente de iniciativas individuais ou familiares; possui caráter urbano; e tem forte traço empreendedor. Ademais, identifica-se que a comunidade chinesa no país é fragmentada ou sem coesão, tem posicionamentos políticos divergentes e possui forte identificação com a província natal, identificação essa que, por vezes, chega a ser mais forte que com a China como um todo. Vale notar, ainda, que a presença cultural chinesa no Brasil conta não só com o apoio de instituições governamentais, como a Embaixada e os Consulados chineses, mas também com iniciativas espontâneas, locais e populares, como a criação de escolas de bairro chinesas e a existência de centros e de templos chineses. Em grandes comemorações, como o Ano Novo Chinês no bairro da Liberdade, por exemplo, esses mundos unem-se.

Agora, um problema grave é o fato de o asiático brasileiro ser visto como uma espécie de minoria modelo, ou seja, é, ao mesmo tempo, vítima de racismo e utilizado como justificativa do racismo no Brasil. Há o chinês – ou mesmo o sino-brasileiro – que é estereotipado e visto como eterno estrangeiro numa sociedade em que a branquitude é tida como o padrão, mas que, simultaneamente, possui certo êxito educacional e econômico. Todas essas questões fazem a gente refletir sobre a contribuição cultural dos chineses no Brasil e sobre os debates acerca da complexidade do problema do racismo no país.

Evandro Carvalho. Tenho uma preocupação em como vamos pensar a presença chinesa hoje. Daniel fez uma excelente explanação das influências chinesas, mas queria mencionar algumas outras questões nesse contexto. Há um esforço muito grande da China para ser aceita no mundo; basta ver, por exemplo, tudo que foi realizado no início da pandemia ao buscar uma cooperação com os demais países na área da saúde e com a doação de máscaras de proteção contra a Covid-19, mesmo em meio a toda a hostilidade que vinha sofrendo com os ataques de parte do mundo ocidental.

Indubitavelmente, a China preferia ser compreendida do que ser descrita como grande, já dizia Lin Yutang, pois sua magnitude é, muitas vezes, utilizada como desculpa para justificar o desconhecimento do país. A China quer se fazer conhecer nesse século XXI como a China do século XXI. Até antes da pandemia, era claro o esforço do governo chinês de promover a vinda de delegações chinesas ao Brasil em diversas áreas, bem como de levar à China delegações de brasileiros. Esses intercâmbios que faziam e ainda fazem com o Brasil e com inúmeros outros países não são só um esforço de construção de soft power, mas também de se fazer compreender para aumentar as possibilidades de a sociedade internacional encontrar um “chão comum” para um diálogo construtivo consigo e menos influenciado por estereótipos.

Vale acrescentar que, no Brasil, vemos uma articulação crescente das comunidades chinesas, que já são bem fortes no comércio e nos investimentos, de tentarem ingressar na seara política. Há candidatos a cargos políticos oriundos da comunidade chinesa. Mesmo tendo a nacionalidade brasileira, utilizam-se de seu parentesco chinês para se promover nessa comunidade, alegando defender os interesses dela nas instituições políticas locais. O contrário não existe.

Dificilmente vamos ver alguém da comunidade brasileira colocando-se na política chinesa, entrando no Partido Comunista da China como brasileiro e tendo uma plataforma para defender os interesses brasileiros na China em termos políticos. Ao mesmo tempo, quando analisamos a comunidade chinesa no Brasil, precisamos de fazer uma radiografia para compreendermos suas raízes familiares e político-identitárias, de forma a verificar com qual província chinesa determinado grupo se identifica e entender seu posicionamento e suas ligações. Isso é relevante até para sabermos diferenciar as ondas de imigração chinesa e suas influências no Brasil, além das práticas e dos discursos que convergem ou não com a China contemporânea.

Um outro ponto importante é a imagem que os chineses têm do Brasil, e ela vem sendo construída a partir de São Paulo, o que é um grande problema. Para mim é muito claro que eles não têm uma visão satisfatória do Brasil, e sim de São Paulo. Esse é um problema seríssimo nessa interação com os chineses, porque há uma construção de imagem do Brasil, orientada pelos interesses econômicos, que faz com que haja uma visão limitada do país por estar muito focada em São Paulo. Isso gera uma distorção sobre o Brasil e sobre sua história. Sendo assim, há um enorme déficit de conhecimento de Brasil que os chineses têm, mas que ainda é menor que o déficit de conhecimento dos brasileiros em relação à China. Tudo isso faz com que nos questionemos sobre qual tipo de interação a nova geração de brasileiros tem com a nova geração de chineses.

Pedro Steenhagen. Esse debate é interessantíssimo e faz com que eu pense logo em duas perguntas para vocês, para explorarmos um pouco mais essas questões. Há um esforço de construção de imagem do Brasil na China, assim como parece ocorrer a partir dos chineses no Brasil? E qual é ou pode ser o papel plataformas digitais na promoção de interações entre jovens brasileiros e jovens chineses?

Evandro Carvalho. Há uma política chinesa de construção de imagem da China no Brasil, e isso é mesmo muito evidente; contudo, não se pode afirmar que há uma política brasileira de construção de imagem do Brasil na China. Por incrível que pareça, os chineses em geral sabem que o Brasil é um grande exportador de commodities, mas não fazem nem ideia do que, de fato, sai daqui. Quem morou ou mora lá, como nós, sabe que a bossa nova é tocada nos cafés chineses, mas os chineses não sabem que ela surgiu aqui no Brasil. Esse é apenas um exemplo.

Quando olhamos para a política linguística, e isso toca na questão de lusofonia que discutimos há pouco, sabemos que os chineses aprendem o português de Portugal. Então, Portugal, que, apesar de sua relevância histórica, é menor geográfica e economicamente que o Brasil, tem mais presença lá que nós. A gente sabe o quanto um idioma carrega também uma visão de mundo, e o Brasil não faz absolutamente nada de substantivo e permanente para promover o português a partir de uma ótica brasileira. Isso mostra claramente um descuido grave do lado brasileiro em sua relação com a China, principalmente quando vemos uma grande disposição da China para ensinar o português lá, até para impulsionar os interesses chineses nos países de língua portuguesa. O Brasil poderia e deveria ter uma política mais definida para melhorar a compreensão do Brasil para os chineses.

Daniel Veras. Sobre as plataformas digitais, elas realmente são muito importantes hoje em dia, ainda mais desde o início da pandemia. Duas plataformas que me veem em mente agora são o site BrasilCN, que é analisado por Gabriel Tsang em um excelente artigo intitulado “The Quotidian Concern and Racial Belonging of Brazilian Chinese: A Study of BrasilCN.com” (International Journal of China Studies, v. 9, n. 3, pp. 303-314, 2018), e o canal Yo Ban Boo, que lida com a construção de uma identidade asiático-brasileira.

O paradigma de imigração asiática no Brasil é japonês, até por fatores demográficos: temos mais de um milhão e meio de japoneses e descendentes no Brasil, portanto é consideravelmente maior que a comunidade chinesa. Ainda assim, o canal Yo Ban Boo tem uma participação relevante de sino-brasileiros, e aí é possível perceber que eles se veem como brasileiros com origem asiática e não querem ser vistos como estrangeiros. É uma abordagem interessante, até porque eles debatem como costumam ser vistos por outras pessoas de fora da comunidade asiática e como buscam sua inserção na sociedade brasileira, gerando conscientização e conhecimento.

Pedro Steenhagen. Para finalizar, gostaria de propor aqui uma reflexão sobre o futuro. Alguns historiadores e sociólogos afirmam que não temos um projeto de país. De maneira semelhante, no âmbito da parceria sino-brasileira, parecemos não ter uma estratégia consolidada. Tendo em vista a crescente importância da China no cenário internacional, como o Brasil pode aproveitar essa relação bilateral para desenvolver um projeto robusto de fortalecimento e de desenvolvimento nacional e regional? E quais são os desafios e as oportunidades de se ter uma China mais presente na América Latina?

Daniel Veras. A meu ver, a parceria Brasil-China é importante para ambos os países, motivo pelo qual temos de nos apoiar em nossos temas de interesse. Temos de fortalecer os BRICS, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a BRI. Todas essas iniciativas fortalecem-se mutuamente; por exemplo, uma América do Sul integrada, em termos de infraestrutura, beneficia todos os atores envolvidos no comércio internacional com a região.

A China é uma economia extremamente forte, então, se o Brasil quiser ter uma atuação mais qualificada com a China, tem de rever algumas escolhas históricas que nos restringiram a um padrão comercial limitado em commodities. Nós temos de ter controle sobre as nossas áreas estratégicas, investindo mais em educação, em tecnologia e no combate à miséria, senão nunca seremos uma pátria inovadora. Ademais, acredito que parte do motivo de não temos um projeto claro para a China passa pela existência de interesses entreguistas, que têm avançado no Brasil e que minam as chances de um desenvolvimento interno mais robusto.

Gostaria, inclusive, de aproveitar a oportunidade para defender a adesão do Brasil à BRI, pois isso seria muito vantajoso para a gente e para a nossa integração, para a nossa interconectividade com os nossos vizinhos. Além disso, olhando para o continente americano, temos um contexto de disputa político-econômica entre China e Estados Unidos, o que pode ser uma oportunidade para o Brasil. Somos um ator de peso na região e podemos utilizar esse momento para conquistar determinadas vantagens. Isso tende a evitar alinhamentos automáticos e a revitalizar a relação do Brasil com ambos os países.

Evandro Carvalho. No plano bilateral, é bom ter claro que o Brasil não depende da China; o Brasil depende das commodities. Da mesma forma, a desindustrialização do país não se deve à China, mas a fatores complexos no plano internacional e às políticas governamentais adotadas no plano interno. Atribuir a responsabilidade à China em relação a essas questões é, na verdade, escolher um bode expiatório para se eximir de qualquer culpa. É necessário que o Brasil deixe essa política infantil de lado, pois a China não é uma ameaça para nós; ao contrário, ela pode ser uma grande parceira para desenvolver setores em que o Brasil está ficando para trás. Enquanto o Brasil mantiver a postura atual, a relação com a China continuará sendo circunstancial, sem método, sem objetivo claro, sem possibilidade de uma realidade ganha-ganha.

De um lado, o Brasil poderia interessar-se mais em negociar e desenvolver sua presença na China. De outro, o país deveria estimular a realização de joint ventures em seu território, tirando proveito das estreitas relações sino-brasileiras e dinamizando setores em que o Brasil está perdendo concorrência. Para isso, o Brasil precisa de fortalecer essa relação bilateral visando ao seu desenvolvimento e retirando do seu horizonte qualquer tipo de estereótipo ou de preconceito advindos de narrativas políticas em relação à China. Por sua vez, no plano multilateral, o BRICS tem uma agenda bastante ampla e provou ser um grupamento capaz de dar origem a iniciativas muito concretas, como o Novo Banco de Desenvolvimento. Neste governo, o Brasil ficou numa posição mais passiva em relação aos BRICS, mas deve demonstrar mais engajamento e voltar a ser protagonista nessa plataforma.

Um outro aspecto é o Brasil no contexto sul-americano. Hoje não dá mais para pensar um processo de integração regional como o Mercado Comum do Sul (Mercosul), ou mesmo a reativação da Unasul, sem levar em conta a presença chinesa na região. Nesse contexto, não se pode mais ver a China só como uma espécie de competidora dos produtos brasileiros, mas também como uma importante aliada. Daí, junto-me ao Daniel para concordar com a importância de o Brasil aderir à Nova Rota da Seda, até para poder estabelecer um diálogo mais qualificado com a China. O Brasil não pode mais pensar a América Latina descontextualizada dessa realidade da presença chinesa, e, sendo um parceiro privilegiado da China na região, poderia avaliar e discutir com os chineses o que pretendem fazer aqui, o que pode ser um componente essencial para a nossa política externa. Infelizmente, o atual governo deu as costas para a região, o que foi um erro estratégico grave não só com os países vizinhos, mas também na sua relação com a China na defesa dos interesses comerciais brasileiros na América do Sul.

Sabemos que a China tem uma estrutura de diálogo muito profunda entre academia, empresa e governo, o que gera mais condições para o desenvolvimento de uma política externa informada e preparada. Diferentemente, no Brasil, há uma desconexão ou uma conexão bastante frágil entre esses atores. Para início de conversa, a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação poderia ser mais aberta ao diálogo, sem ficar restrita a determinados grupos ou instituições, pois isso torna tudo menos transparente, gera certa perda de legitimidade e prejudica um maior diálogo com a academia e com as companhias brasileiras. Integrar todos esses atores é fundamental.

Um outro ponto que eu gostaria de mencionar é que a China possui províncias que têm um produto interno bruto (PIB) maior que o do Brasil, motivo pelo qual o estabelecimento de cidades-irmãs poderia ser melhor aproveitado. Os exemplos de projetos-piloto bem-sucedidos na China também merecem menção aqui, porque podem gerar discussões qualificadas no Brasil sobre o seu pacto federativo, o papel dos Estados federados, a possibilidade de o país ter outros distritos federais e os benefícios de se promover mais Zonas Econômicas Especiais no território nacional, como a Zona Franca de Manaus.

O Brasil tenta andar pra frente com o freio de mão acionado, mas isso tem de mudar. Em meio a um mundo mais conflituoso, o país precisa de reafirmar com todas as letras o seu compromisso assumido em 1974, reconhecendo que quem governa toda a China é a República Popular da China, para deixar muito claro que o Brasil não aceitará ingressar em um ambiente típico da Guerra Fria que os Estados Unidos buscam imprimir. Afinal, temos de saber muito bem quais são os nossos interesses nacionais e temos de ter claro que, numa linha gradativa entre uma democracia plena e uma ditadura radical, Estados Unidos e China não estão nas extremidades. A gente tem de entender que um país que erradicou a extrema pobreza tem um sistema político-jurídico que funciona e que tem um alto grau de legitimidade perante a sua população. Todas as nações têm seus problemas, têm muito o que ensinar, e a China mais ainda, pois o grau de desconhecimento em relação ao país ainda é muito grande.

Por fim, noto que o fortalecimento da relação com a China é um fator que nos dá mais condições de dialogar com os Estados Unidos de igual para igual. Ao contrário do que muita gente possa pensar, defender a relação sino-brasileira não é ser contrário ao relacionamento com os Estados Unidos, mas abrir mão daquela parceria é tornar o Brasil fragilizado na interação com os estadunidenses. Dessa forma, a relação Brasil-China contribui para que a relação Brasil-Estados Unidos seja promovida em bases mais soberanas e independentes.

Entrevista realizada por: Pedro Steenhagen Data da publicação: 7 de setembro de 2022

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