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Entre os diferentes debates associados às relações China-América Latina, ou entre China-América do Sul, de forma mais específica, a presença chinesa no chamado “triângulo do lítio” é sem dúvidas um dos que despertam maior interesse. Em torno dessa presença, se articulam percepções, receios e incertezas que tangenciam discussões abrangentes, incluindo disputas por minerais estratégicos, domínio sobre tecnologias energéticas e as oportunidades e limites para o desenvolvimento sustentável.
A importância do lítio cresceu de forma significativa nos últimos anos por conta do uso extensivo de baterias recarregáveis de íon-lítio em veículos elétricos, dispositivos eletrônicos portáteis e aplicações de armazenamento de energia. Entre 2010 e 2021, o consumo de lítio cresceu 283%, impulsionado pela produção de baterias, responsável por 80% das aplicações de uso final do mineral.
A produção de dispositivos eletrônicos requer diferentes quantidades de carbonato de lítio: celulares demandam 3 gramas, tablets necessitam de 20 gramas e laptops utilizam 30 gramas. No entanto, a demanda por lítio é significativamente maior na indústria de veículos elétricos, com uma média de 50 quilos em carros e 200 quilos em ônibus. [1] Devido ao crescimento esperado dessa indústria e diante da necessidade de mitigar emissões de setores de uso final, estima-se que a demanda por lítio alcance aproximadamente 1,8 milhão de toneladas até 2030, o que representa um aumento de cerca de seis vezes em relação aos níveis de consumo registrados em 2020. [2]
Dessa forma, percebe-se a importância da América Latina. A região concentra mais da metade do lítio identificado no planeta, e a maior parte está situada no chamado “triângulo do lítio”, região que possui as concentrações relativas mais elevadas do metal no mundo. [3] As reservas são derivadas de depósitos localizados nos territórios da Bolívia, Argentina e Chile, em especial, os salares de Uyuni, Puna e Atacama, respectivamente, onde o elemento químico é obtido pela evaporação.
Embora as salinas dos três países correspondam a até 60% dos recursos globais de lítio, a sua produção ainda está abaixo de seu potencial, em parte devido à falta de capacidade produtiva e tecnológica para as atividades de extração e refino. O principal produtor, na atualidade, é a Austrália, com 46% da produção global em 2021, seguido pelo Chile, com 32%. Cabe salientar que, diferentemente da Austrália, que produz lítio a partir de depósitos de rocha, o Chile é o principal produtor de lítio de alta-qualidade de salares. [4] A Argentina representa apenas 8% da produção mundial, enquanto a Bolívia ainda não tem produção em escala industrial.
Se depender do interesse de potências tecnológicas e investidores estrangeiros, o panorama tende a se modificar rapidamente. Ao lado dos Estados Unidos, União Europeia e outros países, a China constitui um ator central na “corrida” pelo “ouro branco”, considerando a sua atual posição como maior importador de lítio e principal provedor de componentes de baterias.
Em 2022, a China contabilizou a maior parcela do processamento de componentes-chave de baterias. Essa proeminência é impulsionada pelo acelerado desenvolvimento da indústria de baterias e veículos elétricos no país, conforme apresentado em análise recente de Ricardo Kotz, Especialista Residente da Observa China. Atualmente, o país responde por cerca de 60% da produção global de baterias de veículos elétricos, possuindo cerca de metade da frota global deles e mais de 60% da infraestrutura mundial de unidades de carregamento público.
Como resultado da demanda por lítio e outros minerais estratégicos, observou-se, nos últimos anos, a expansão acelerada dos investimentos chineses em projetos ao longo da cadeia de veículos elétricos. Entre 2016 e 2022, o valor dos investimentos anunciados pela China, nesses setores, aumentou mais de 40 vezes, passando de US$605 milhões para US$23 bilhões. [5] Os aportes contemplam empreendimentos de mineração e projetos em plantas de produção de baterias e de carros elétricos. [6]
Em relação ao investimento chinês, na América Latina, a Argentina tem oferecido condições atrativas para investidores estrangeiros, incluindo baixas taxas de royalties, o que tem contribuído para o país se tornar destino preferencial de investimentos de multinacionais estrangeiras. As companhias chinesas são os investidores líderes em novos projetos de lítio na Argentina, onde empresas como a Ganfeng Lithium e Zijin Mining, já investiram mais de US$2,7 bilhões. [7] Até 2030, ao menos 26% da produção de lítio do país se originará de projetos com envolvimento chinês. [8]
No Chile, a chinesa Tianqi Lithium adquiriu 26% de uma das maiores produtoras de lítio do mundo, a Sociedad Química y Minera (SQM). [9] A transação de cerca de US$4 bilhões representou mais da metade dos fluxos de IED da China na América Latina em 2018 e o principal investimento de uma companhia chinesa no Chile. A China foi destino de 72% das exportações chilenas de lítio em 2021, seguido pela Coreia do Sul e pelo Japão, com 15% e 7%, respectivamente.
Conhecida como “Arábia Saudita” do lítio, em virtude de seus vastos recursos já identificados, a Bolívia está buscando se engajar com companhias estrangeiras para desenvolver seu potencial de produção. Em janeiro de 2023, o governo de Luis Arce assinou um acordo de US$1 bilhão com um consórcio de firmas chinesas para desenvolver as reservas de lítio nos salares de Uyuni e Oruro. [10] O consórcio inclui a Contemporary Amperex Ltd. (CATL), líder no segmento de baterias, e a empresa de mineração CMOC. [11] A parceria dará ao consórcio a capacidade de produzir 25,000 toneladas de carbonato de lítio por ano, por meio de duas unidades de produção. Os investimentos totais podem atingir cerca de US$10 bilhões ao longo desta década.
Cabe mencionar brevemente o papel do Brasil como um dos players no mercado global de lítio. Segundo o Ministério de Minas e Energia do governo federal, o país é o sétimo maior detentor de reservas deste recurso e o quinto maior produtor mundial, com a produção predominantemente concentrada na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Distintivamente, o lítio extraído pelo Brasil possui um padrão triplo zero, ou seja, sem emissões de carbono, rejeitos e substâncias químicas nocivas, posicionando-o de maneira estratégica no mercado por sua alta qualidade. A China tem buscado fortalecer os laços comerciais com o Brasil, principalmente por meio de acordos de fornecimento e de parcerias com empresas locais.
Interessa à China, portanto, assegurar o fornecimento ordenado de minerais estratégicos como forma de sustentar sua dominância nas cadeias de suprimento de baterias e veículos elétricos e reforçar a competitividade global de suas empresas. Desdobra-se, assim, uma nova dimensão do relacionamento entre a China e os países sul-americanos.
Os investimentos chineses em projetos de lítio na América do Sul se situam em um contexto marcado pelo acirramento da disputa produtiva e tecnológica entre China e Estados Unidos. Em razão dos choques externos dos últimos anos, intensificou-se em Washington o reconhecimento a respeito da necessidade de diversificar os fornecedores de energia e matérias-primas, motivando ações para reduzir o grau de influência da China e conter o seu acelerado desenvolvimento científico e tecnológico, como o Inflation Reduction Act (IRA). [12]
Nesse contexto, a América do Sul reforça sua posição enquanto espaço geoeconômico e geopolítico em disputa, ao passo que o lítio se converte em um dos principais ativos na competição produtiva e tecnológica travada entre Beijing e Washington. [13] Paralelamente, os países sul-americanos e latino-americanos se deparam novamente com dilemas que atravessaram a história da região, em particular a necessidade de superar modelos de desenvolvimento baseado na exportação de produtos primários.
Com a explosão da demanda global por lítio, indaga-se sobre as políticas a serem implementadas para beneficiar o desenvolvimento econômico e sustentável da região. De um lado, há receios de que sejam reproduzidas relações de “neodependência”, “neocolonialismo” ou “colonialismo verde”. Nesse cenário, regiões como o triângulo do lítio se tornariam “zonas de sacrifício verde”, por meio das quais os recursos para transição energética nos países desenvolvidos seriam obtidos mediante elevados impactos socioambientais e com poucos benefícios ao desenvolvimento local no longo prazo. [14] Por outro, analistas enfatizam que o lítio é um elemento abundante no mundo, que há ciclos e momentos oportunos para investimento, o que reforçaria a necessidade de atrair capital para efetivar projetos no futuro.
Cabe aos países da região e, em especial os produtores de commodities centrais para a transição energética no século XXI, avaliar as parcerias que estão sendo atualmente construídas e delinear estratégias alinhadas às suas próprias necessidades de desenvolvimento. Atesta-se, neste sentido, a importância de aprofundar investigações voltadas à análise dos impactos, desafios e oportunidades decorrentes da integração das economias da região às cadeias emergentes e associadas às trajetórias globais de transição energética e descarbonização.
[1] Tulio Cariello, Investimentos Chineses no Brasil: tecnologia e transição energética (Rio de Janeiro: Conselho Empresarial Brasil-China, 2023). [2] Tulio Cariello, Investimentos Chineses no Brasil. [3] Patrícia Vásquez, ed., Latin America's lithium: perspectives on critical minerals and the global energy transition (Washington: Wilson Center, 2023). [4] Patricia Vásquez, All Eyes on Chile amid Global Scramble for Lithium (Washington: Wilson Center 2023). [5] Aghata Kratz et al, “EV battery investments cushion drop to decade low: Chinese FDI in Europe 2022 Update”, Rhodium Group and MERICS, Maio 9, 2023, https://merics.org/en/report/ev-battery-investments-cushion-drop-decade-low-chinese-fdi-europe-2022-update. [6] Cariello, Investimentos Chineses no Brasil, 11. [7] Sanderson, Henry. Great Power Competition in the Lithium Triangle, em “Latin America's lithium: perspectives on critical minerals and the global energy transition”, ed, Patricia Vásquez (Washington: Wilson Center, 2023). [8] Sanderson, Great Power Competition in the Lithium Triangle. [9] Vásquez, Latin America’s lithium. [10] Zara Albright, Rebecca Ray, e Yudong Liu, China-Latin America and the Caribbean Economic (Washington: GDP Center, 2023). [11] Albright, Ray, e Liu, China-Latin America and the Caribbean Economic. [12] Vásquez, Latin America’s lithium. [13] Cristina Pecequilo, "A América do Sul como Espaço Geopolítico e Geoeconômico: o Brasil, os Estados Unidos e a China," Carta Internacional 8, no. 2 (2013): 100–115. [14] Fornillo, Bruno, e Andrea Lampis. “From the Lithium Triangle to the Latin American Quarry: The Shifting Geographies of de-Fossilisation”. The Extractive Industries and Society 15 (setembro de 2023): 101326.
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