Editora Intrínseca, 2024, tradução de Yonghui Qio, 352 páginas
Ao longo de 346 páginas e 24 capítulos, Rebecca Kuang, que também é autora da trilogia best-seller A Guerra da Papoula e do premiado Babel: Ou a necessidade da violência, nos prende com uma escrita ágil, irônica, corajosa e cheia de referências ao nosso tempo.
Estão no livro as redes sociais, o medo do cancelamento, a amizade feminina, os bastidores do mercado editorial, a busca pela fama, as questões sobre racismo, apropriação cultural e lugar de fala. Vale ressaltar que Impostora foi escrito em meio à Pandemia do Coronavírus, momento em que o mundo estava extremamente conectado e, por isso, o universo online se faz tão presente ao longo da história.
Antes de entrar na sinopse da trama, vale comentar sobre a escolha gráfica da capa de Impostora: os olhos amendoados e o fundo amarelo. A própria autora falou sobre essa escolha em uma entrevista concedida em agosto de 2024 ao evento All About Women 2024 at The Sydney Opera House: “Você não vê nada além desse rótulo racial básico e irresponsável. Acho que é uma boa metáfora para como categorias de identidade tão rígidas, quando mercantilizadas e institucionalizadas, realmente apagam e obliteram as nuances da identidade.” (Yellowface with Rebecca F. Kuang | All About Women 2024)
Quem nos conduz pela leitura é Juniper Hayward, a impostora que dá título ao livro, e sem nenhum rodeio, logo nas páginas iniciais, estamos na noite da morte de Athena Liu, sua bem-sucedida colega de faculdade, que acabara de vender os direitos de um livro para a Netflix. É interessante observar que a dinâmica de escrita de Impostora lembra muito o ritmo de uma série de streaming, daquelas que maratonamos ávidos pelo desfecho da trama.
Apesar de já ter publicado um livro, Juniper Hayward ainda não alcançou notoriedade e nem recebeu todo o mérito que acredita ser merecedora do mercado editorial. É pelo ponto de vista dela que somos apresentados à Athena Liu, a menina “que tem tudo”. Nascida em Hong Kong, criada entre Sydney e Nova Iorque e educada em internatos britânicos, Athena tinha contrato com uma editora renomada, várias indicações a prêmios e já havia publicado três romances de sucesso antes dos 30.
Além disso, segundo Juniper, Athena era bonita e sofisticada e esses seriam os motivos que justificavam ela ser tão queridinha pelo mercado editorial. Além, é claro, da colega ser “diversa o suficiente” para ocupar tal destaque, como ela enfatiza com ironia. Só pela lista de qualidades citadas e pelo tom irônico sobre diversidade, entendemos o que Athena representava para Juniper e o que ela sentia pela colega: uma enorme inveja. Juniper é a menina branca sem a menor consciência crítica que acredita que o mercado editorial não tem interesse nela por ela ser mais autora branca dentre tantas outras.
Então, em uma noite na casa de Athena, comemorando com ela o contrato da Netflix, uma situação completamente inusitada acontece e Athena morre. Entre a ligação para a emergência e a saída da casa da colega, Juniper se apossa do último manuscrito dela.
E começa a grande farsa da impostora: com os esboços das ideias de Athena em mãos, Juniper entra em um diálogo consigo mesma sobre a necessidade de levar a público o que a colega de Yale estava trabalhando nos últimos meses. E, assim, mergulha em uma longa pesquisa para finalizar o romance.
Só que o manuscrito que ela rouba de Athena é nada mais nada menos que um romance histórico sobre as contribuições dos trabalhadores chineses durante a Primeira Guerra Mundial. June vai editando e apagando aqui e ali a história esboçada por Athena e aos poucos vai creditando a autoria do livro a si mesma.
E como ela sabe exatamente como funciona a lógica do mercado editorial, calcula cada passo com frieza em busca do sucesso. Nessa empreitada, June encontra uma nova equipe editorial disposta a orientá-la no que eles consideram ser um reposicionamento dela.
Então a impostora publica o livro substituindo o sobrenome Hayward por Song, numa tentativa de confundir os leitores sobre a sua origem e faz uma foto alterando um pouco a tonalidade de sua pele. Tudo milimetricamente calculado por ela e pela equipe de marketing da editora.
O livro é publicado e se torna um sucesso. Mas a farsa vai escalonando e a internet reage questionando a autoria do livro por conta das semelhanças entre a escrita de June e Athena. Acompanhamos toda tormenta psicológica que a impostora vai passar. Numa escrita corajosa sem ser panfletária, Rebecca nos leva na voz dessa narradora impostora a viver não só o medo da descoberta, mas também nos coloca nos bastidores dos processos de decisão do mercado editorial.
Rebecca nos mostra as camadas e ambiguidades das personagens sem o maniqueísmo simplista de vilã versus mocinha. E aí está um dos grandes trunfos do livro: as personagens são como os seres humanos, muito mais complexas do que simplesmente boas ou más.
June cometeu um crime e sobre esse fato não há dúvidas. Ela é extremamente racista, seus pensamentos e suas condutas para obter vantagens usam e abusam do racismo existente em nossa sociedade, mas as discussões de Impostora vão além da obviedade.
O desfecho do livro, ainda que aquém do restante da trama, não chega a prejudicar a obra nem apagar os questionamentos levantados por ela. Na verdade, as questões de Impostora ficam ecoando durante e depois da leitura.
A principal delas para mim foi a que dá título a este artigo “Afinal, a quem cabe contar uma história?”. Na mesma entrevista na Opera House em Sydney, em que falou sobre a capa do livro, Rebecca foi questionada se existia uma regra de que apenas certas pessoas poderiam contar certas histórias.
Em tradução livre, a autora afirmou que era uma extremista em relação à liberdade dos artistas e que considerava perigosas conversas do tipo “você não tem a identidade certa, as qualificações certas, você não é x/y/z o suficiente”. Disse ainda que “quando se trata de raça e etnia, esse tipo de discurso pode sair pela culatra e em vez de abrir oportunidades, pode acabar enquadrando as pessoas em um mesmo tipo de trauma, quando elas poderiam ser conhecidas por outros trabalhos”.
Esse é um ponto bastante importante dentro desse debate: não limitar o conhecimento de uma pessoa não-branca às questões raciais. Ainda na mesma entrevista, Rebecca fez uma provocação: “Se você não fala chinês, tem o direito de escrever sobre a China? Se você nasceu na China e se mudou para os EUA. Se você foi completamente americanizado em sua criação. O que te desqualifica de escrever autenticamente sobre a identidade chinesa? Gosto de ser muito crítica em relação a tudo isso. Mas quando caio em: ‘Você é chinês o suficiente para escrever isso?’ Ou ‘você é imigrante o suficiente para escrever isso?’ Ou ‘você sofreu o suficiente para escrever isso?’, acho isso incrivelmente perigoso e, na minha opinião, ruim para a literatura em geral”.
Mais do que quem deve ou não contar uma história, a autora diz que deveríamos nos questionar sobre “O que o texto está fazendo? Por que o autor escolheu escrever sobre essas pessoas? E fazer uma questão separada sobre a economia literária: “Quem está sendo pago para obter essas histórias? Todas essas são perguntas muito melhores do que quem tem o direito de contar essa história? O que eu acho inerentemente absurdo”.
Sobre a Autora
R.F. Kuang é escritora, tradutora de mandarim e bolsista da Marshall Scholarship. Mestra em Filosofia na área de Estudos Chineses por Cambridge e em Estudos Chineses Contemporâneos por Oxford, atualmente cursa o doutorado em Literatura e Línguas do Leste da Ásia em Yale. Vencedora dos prêmios Nebula e Locus por Babel ou a necessidade de violência, Kuang também é autora da trilogia best-seller A Guerra da Papoula ― que foi indicada a diversos prêmios, incluindo o Hugo ― e por dois anos consecutivos recebeu o British Book Awards, por Babel e Impostora: Yellowface.
Sinopse
Da autora de A Guerra da Papoula e Babel, um thriller ácido e certeiro sobre apropriação cultural, racismo e as mazelas do mercado editorial.
As escritoras June Hayward e Athena Liu se formaram em Yale e publicaram seus romances de estreia na mesma época. Tudo indicava que chegariam juntas ao estrelato, mas, pouco depois da graduação, Athena começou a colher louros literários, enquanto June recebeu apenas migalhas de reconhecimento. Afinal, ninguém aguenta mais ler histórias de mulheres brancas — ao menos é o que June pensa.
Quando Athena morre em um estranho incidente, June decide que chegou seu momento de brilhar. Por impulso, ela rouba o manuscrito do novo livro da amiga, uma obra experimental sobre a relevância dos trabalhadores chineses durante a Primeira Guerra Mundial.
O texto é brilhante. E June recebe uma proposta de publicação de sua editora, que sugere um reposicionamento de mercado. E se ela passasse a usar um nome ambíguo, como Juniper Song? June aceita, pois se uma história é boa, precisa ser contada. E as listas de mais vendidos a fazem acreditar que está no caminho certo.
Mas alguém parece saber que a obra-prima de Athena Liu foi roubada, e debates sobre plágio e identidade racial ganham as redes sociais. June então percebe que não poderá escapar desse fantasma para sempre. Do que ela será capaz para proteger o sucesso que acredita merecer?
R.F. Kuang mostra a versatilidade de sua escrita ao construir um retrato satírico de como diversidade, racismo e apropriação cultural são abordados em uma indústria que se considera livre de preconceitos, mas que não escapa das armadilhas e crueldades de um sistema que reproduz discriminações.
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