Especial "Centenário do Partido Comunista da China"

Entrevista com Prof. Isabela Nogueira

1 JULY 2021
Especial "Centenário do Partido Comunista da China"

Isabela Nogueira é professora do Instituto de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina). Foi pesquisadora visitante da Tsinghua University (China) e do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos em Maputo (Moçambique), professora visitante em Economia Internacional da Aalto University (Finlândia) e professora do Instituto de Socioeconomia na Universidade de Genebra (Suíça). Tem pesquisado e publicado sobre Economia Política da China desde 2003 em diversas revistas acadêmicas, incluindo as seguintes: Critical Asian Studies; Forum for Development Studies; Revue Autrepart; Revista de Economia Política, Economia e Sociedade; e Revista de Economia Contemporânea.

Pedro Steenhagen. Em 1º de julho de 1921, o Partido Comunista da China foi fundado em Shanghai. Quais foram os principais fatores políticos, econômicos e sociais, tanto no plano interno quanto no externo, que levaram a sua criação? Quais eram as bases teórico-ideológicas e os objetivos iniciais do Partido?

Prof. Isabela Nogueira. O Partido Comunista da China (PCCh) é, acima de tudo, um partido que nasce da luta anti-imperialista do início do século XX, e as consequências disso para os dias de hoje são absolutamente definitivas. A outrora grandiosa China viveu sob a bota do imperialismo desde a primeira Guerra do Ópio, em 1839, e só recuperou a paz interna com a Revolução Comunista, em 1949. São mais de cem anos durante os quais uma antiga civilização atravessou guerras, perda de autonomia do território, destruição social por conta do ópio, caos econômico, estupros em massa, enfim, um século de humilhações que apenas o PCCh foi capaz de conter.

O legado disso não ficou só nos livros de História. Há uma percepção viva, por parte tanto das lideranças chinesas quanto da sociedade em geral, de que o sistema internacional capitalista, na sua essência competitivo e predatório, é uma ameaça à própria existência da China. A modernização é, portanto, um projeto político: sem poder econômico, não há soberania nacional. E há poucas dúvidas de que apenas o PCCh é capaz, nesse momento histórico, de entregar ambas as coisas.

Do ponto de vista da prática revolucionária, é curioso, na esteira do que já disse o historiador marxista Perry Anderson, como a Revolução Chinesa, ainda que inspirada na Revolução Russa, tenha invertido praticamente todos os seus termos. O PCCh promoveu uma guerra de guerrilhas crescentemente eficaz contra o invasor e, depois, contra seus opositores na guerra civil. Sua capacidade de combinar a reforma das aldeias rurais com resistência ao invasor estrangeiro lhe rendeu algo que os bolcheviques nunca tiveram: enorme prestígio e base de apoio em meio ao campesinato, classe que formava grande maioria da população. Com isso, o PCCh cresceu exponencialmente: se, em 1925, o Partido não contava nem com mil membros, em 1947, ao estourar a guerra civil, eram cerca de 2,7 milhões de filiados.

As bases ideológicas de um marxismo à chinesa e seus objetivos eram, portanto, de enorme apelo popular: expulsar os estrangeiros; restaurar a ordem e a harmonia; dar centralidade ao camponês como força revolucionária; e preparar os caminhos para o que seria um modo de produção organizado e justo, levando bem-estar à população.

Pedro Steenhagen. Em 1949, a República Popular da China foi estabelecida a partir da Revolução Comunista, comandada por Mao Zedong. Quais foram os processos históricos determinantes para que o Partido assumisse a condução definitiva do país na metade do século XX? Quais foram as principais contribuições de Mao Zedong, tanto como revolucionário quanto como líder da China nos anos subsequentes, para o País do Meio e para a sociedade internacional?

Prof. Isabela Nogueira. No momento da tomada do poder pelos comunistas, em outubro de 1949, a China estava completamente esfacelada. Assim, é realmente uma grande pergunta como o PCCh consegue manter o país unido e impedir uma contrarrevolução do Partido Nacionalista com apoio dos Estados Unidos nos anos seguintes. Naquele momento, a presença soviética foi importante, seja para apoiar a organização do Estado e ensejar o planejamento econômico, seja para forjar um bloco socialista inicialmente (e aparentemente) coeso. De toda forma, o sucesso da reconstrução econômica nos anos iniciais, resultado da capacidade de liderança do PCCh, acabou sendo essencial: fábricas foram restabelecidas, a produção agrícola foi retomada, e as escolas e os hospitais foram reabertos, aprofundando o apoio social.

Em contrapartida, os anos seguintes sob o maoísmo são um emaranhando de contradições. Se, por um lado, o país melhorou de sobremaneira seus indicadores básicos de saúde e educação, bem como efetivamente transformou-se em uma nação industrializada, por outro, a produção agrícola per capita ficou estagnada, mantendo a pobreza como uma regra geral nacional (e uma população à beira da insegurança alimentar). Isso significa dizer que, em termos per capita, o camponês na China, em 1952, comia exatamente a mesma coisa que em 1976, ano do falecimento de Mao. As tragédias do Grande Salto Adiante (uma grande cegueira burocrática) e da Revolução Cultural (com suas perseguições e impulsos totalitários) deixam feridas profundas na história do PCCh.

Tudo estava acontecendo em um ambiente internacional com risco iminente de guerra: seja por conta da possibilidade de guerra com Taiwan, seja por causa de uma guerra efetiva na Coréia, da Guerra do Vietnã, das ameaças de um Japão tutelado pelos Estados Unidos e, por fim, dos conflitos com soviéticos e indianos a partir da década de 1960. Ainda assim, há muitos erros evidentes na condução do país sob Mao, e o próprio PCCh já disse a famosa frase de que ele esteve certo 70% das vezes (e, portanto, errado nos 30% restantes).

Pedro Steenhagen. A partir de 1978, a China iniciou um processo de reforma e abertura, capitaneado por Deng Xiaoping. Como se deu essa mudança de abordagem no desenvolvimento chinês? Quais foram as características fundamentais desse processo ao longo dos anos 1980 e 1990?

Prof. Isabela Nogueira. Esse é o período em que a China se integra ao capitalismo global sem, no entanto, se tornar neoliberal. O Estado (o que significa dizer, na realidade, o Partido Comunista) efetivamente conduziu esse processo de maneira magistral, sem terapias de choque, como nos mostra Isabella M. Weber em seu livro “How China Escaped Shock Therapy: The Market Reform Debate”, lançado neste ano pela Routledge. Na década de 1980, a China promoveu a mais rápida e radical redução da pobreza da história da humanidade, retirando 400 milhões de pessoas da linha da pobreza com reformas no campo, baseadas em pequenas unidades de produção e compras de produtos agrícolas asseguradas pelo Estado. São políticas públicas que merecem ser melhor estudadas no Brasil.

Nos anos 1990, quando a China efetivamente se abriu para o investimento estrangeiro direto (IED), isso foi feito com enorme regulação. O que caracterizou a chegada do IED na China foi o extraordinário controle pelo Estado, que determinou, dentre outras questões, a obrigatoriedade de transferência de tecnologia e de se ter parceiro local, além de orientar a localização geográfica do investimento. Por que as firmas estrangeiras aceitaram essas condições e foram se instalar lá? Por conta dos lucros extraordinários conseguidos na China com mão de obra barata, boa infraestrutura e escala mastodôntica de produção. E atenção: isso tudo aconteceu em um mundo que começava a se financeirizar e a assistir à reestruturação produtiva via formação de cadeias globais de valor.

Todo mundo se liberalizou e se financeirizou a partir da década de 1990, menos a China. Esse é o aspecto fundamental do sucesso dos chineses. Eles aproveitaram a onda das cadeias globais para fazer algo que o mundo inteiro estava revertendo e, em muitos casos, proibindo: uma política industrial muito agressiva. Essa política industrial só foi tão efetiva graças às características essenciais do sistema econômico chinês, tais como sistema bancário majoritariamente estatal; controle de capitais, o que evitou a financeirização; planejamento pelo Estado; e sistema nacional de inovação.

Pedro Steenhagen. Ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, a China ganhou cada vez mais importância na política e na economia internacionais, particularmente sob a liderança de Xi Jinping. Quais são seus desafios mais substanciais, nacional e internacionalmente, para dar continuidade ao projeto de desenvolvimento chinês? Como a Iniciativa Cinturão e Rota pode contribuir para a cooperação internacional e para a construção de uma “comunidade de destino comum para a humanidade”?

Prof. Isabela Nogueira. A China entrou no século XXI fazendo o que nenhum outro país do mundo fez nesse período: escalou rapidamente as cadeias globais de valor para deixar de ser chão de fábrica e se tornar um país-sede de firmas líderes, que definem padrões tecnológicos utilizados globalmente. E o processo continua. A atual fase da política industrial chinesa não é mais de fazer catch-up, ou de se emparelhar em relação aos países centrais do mundo, mas de ultrapassagem, de liderar o processo disso que chamamos de uma Quarta Revolução Industrial. Trata-se de uma mudança na forma como as coisas são produzidas, como tudo é transportado, como a energia é gerada, como as cidades são organizadas, como a vigilância acontece e até mesmo como as guerras são feitas. A China quer ser um dos países líderes desse processo.

Nesse contexto, hoje, nenhum desafio é tão grande para a China quanto o embate tecnológico e estratégico com os Estados Unidos, atual potência hegemônica. Isso não significa de nenhuma maneira a reedição de uma nova Guerra Fria, muito pelo contrário. São países profundamente imbricados do ponto de vista econômico e produtivo; contudo, se, por um lado, os cenários possíveis desse confronto são múltiplos, por outro, é indubitável que os Estados Unidos seguirão com estratégias cada vez mais agressivas de contenção ao desenvolvimento chinês.

A chamada Nova Rota da Seda, por sua vez, é um conjunto de políticas econômicas, arranjos diplomáticos e instituições financeiras (como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura – AIIB, na sigla em inglês) que amarra a estratégia chinesa de desenvolvimento para os próximos anos. É um projeto de projeção de poder multifacetado, que combina comércio, infraestrutura, uso internacional da sua moeda e interesses geopolíticos variados, como o controle de novas rotas de fornecimento de energia. Ela mostra ao mundo a centralidade do investimento em infraestrutura para o crescimento econômico e para a estratégia chinesa.

Pedro Steenhagen. No final de 2020, o País do Meio anunciou a erradicação da extrema pobreza em seu território, e, no início de 2021, apresentou seu novo Plano Quinquenal e seus objetivos de longo prazo. Analisando seus 100 anos de história, quais são as principais contribuições do Partido Comunista para a China e para o mundo?

Prof. Isabela Nogueira. O Partido Comunista da China mostrou ao mundo que alternativas de desenvolvimento ao modelo neoliberal são a única saída para o subdesenvolvimento. Romper com a condição periférica requer um projeto de desenvolvimento autônomo, concebido a partir das suas próprias particularidades internas e investido de um grande desejo de construção de algo que seja verdadeiramente nacional. Não é possível um projeto de fortalecimento nacional que deixe uma massa de pobres para trás ou que resulte em um desequilíbrio social tal como vemos hoje no Brasil por conta das desigualdades. Entre 2009 e 2010, quando estive trabalhando em uma universidade chinesa, uma das perguntas que mais me faziam como acadêmica era como evitar a “latino-americanização” da sociedade chinesa, ou seja, como evitar que as desigualdades se tornassem um entrave para o desenvolvimento chinês, como ocorre na América Latina.

A formação econômico-social da China moderna, tanto por conta do seu legado de dois mil anos do período imperial quanto por causa do choque com o imperialismo ocidental e japonês, trouxe consigo uma enorme clareza para lideranças e para o imaginário social sobre a necessidade de um projeto nacional autônomo. E o Partido Comunista da China encarna isso: uma resposta de desenvolvimento nacional que faz a síntese entre o legado civilizacional chinês e a herança da experiência histórica da luta anti-imperialista. Isso gera enormes lições para outros países periféricos e, em conjunto com as mudanças nas placas tectônicas do poder em escala global, muitas implicações para as possibilidades futuras de desenvolvimento de países como o Brasil.

Entrevista conduzida por: Pedro Steenhagen Data da publicação: 1º de julho de 2021

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