
Em meados de 2024, enquanto o Brasil celebrava os 50 anos de relações diplomáticas com a China, uma sensação de balanço e perspectiva se impunha. Meio século de uma parceria que, para muitos, parece ter se materializado da noite para o dia, mas que, na verdade, foi construída sobre décadas de negociações, interesses convergentes e, por que não, uma boa dose de pragmatismo.
Vivendo nessa ponte entre a China e o Brasil desde 2008, percebo em muitas conversas com interlocutores diversos que a China ainda é vista com uma mistura de fascínio e desconfiança. Melhorou com o tempo, mas ainda existe essa visão. Em algumas leituras habituais, é fácil perceber a abordagem de um gigante adormecido cujo despertar poderia tanto nos beneficiar quanto nos engolir.
A questão é que hoje o gigante não apenas despertou, como se tornou o principal parceiro comercial do Brasil. Um investidor onipresente e um ator incontornável no cenário global.
Os números, de fato, são impressionantes e justificam a centralidade da China no debate público brasileiro. Em 2023, o comércio bilateral ultrapassou a marca dos US$157 bilhões, um recorde histórico que consolida uma interdependência econômica sem precedentes. Soja, minério de ferro e petróleo fluem para o leste, enquanto manufaturados, eletrônicos e uma crescente gama de produtos de alto valor agregado chegam ao Brasil. Essa narrativa, focada na balança comercial e nos investimentos em infraestrutura, é a que domina as manchetes e as análises. É uma leitura lógica, necessária, mas perigosamente incompleta.
Ao nos concentrarmos excessivamente nos gráficos e nas planilhas, corremos o risco de esquecer que as relações entre países são, em última análise, relações entre pessoas. E, nesse quesito, a distância entre Brasil e China permanece abissal. Quantos brasileiros, afinal, conseguem nomear um cineasta chinês contemporâneo? Ou um escritor? Quantos chineses sabem que o Brasil é mais do que futebol, carnaval e a Amazônia? A resposta, para ambos os lados, é provavelmente decepcionante. O desconhecimento mútuo é a regra, não a exceção.
É nesse contexto que o anúncio da celebração do Ano da Cultura e do Turismo Brasil-China em 2026 assume uma importância que transcende o simbolismo. A iniciativa, selada durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Beijing em 2023, representa um reconhecimento, em alto nível, de que a sustentabilidade da parceria estratégica sino-brasileira depende de alicerces mais profundos e diversificados. É um aceno para a necessidade de construir pontes que vão além das transações comerciais, pontes feitas de linguagem, arte, história e experiências compartilhadas.
A proposta é ambiciosa. A declaração conjunta assinada pelos presidentes Lula e Xi Jinping estabelece um roteiro que inclui a promoção do patrimônio cultural e natural de cada país, o intercâmbio artístico e acadêmico, o estímulo ao ensino de idiomas e o fortalecimento da cooperação em áreas como cinema e museologia. O turismo, claro, é um componente central. O governo brasileiro já manifestou o interesse em atrair um fluxo maior de turistas chineses, especialmente para destinos como a Amazônia, Bonito, Foz do Iguaçu e o Pantanal, muito populares entre os chineses, mas que deixa de lado outros mercados com um potencial gigantesco e ainda pouco explorados no território brasileiro.
No campo do cinema, a ideia é capitalizar sobre iniciativas bem-sucedidas, como as mostras de cinema brasileiro que já acontecem em festivais como o de Shanghai, e transformá-las em uma colaboração mais estruturada. Acordos de coprodução, que facilitariam a filmagem de produções chinesas no Brasil e vice-versa, estão na mesa. Imagine o impacto de um grande sucesso de bilheteria chinês com cenas gravadas no Pelourinho ou nos Lençóis Maranhenses. Ou de um filme brasileiro que explore as complexidades da vida urbana em Beijing ou Shanghai.
Nas artes visuais, a cooperação entre museus, como a já aventada parceria entre o Museu da Língua Portuguesa e o Museu Nacional da China, pode abrir janelas para mundos inteiramente novos. Exposições de artefatos históricos chineses no Brasil e de arte brasileira na China poderiam desafiar estereótipos e revelar as ricas e complexas trajetórias de ambas as civilizações. O intercâmbio de especialistas em preservação de acervos, por sua vez, criaria um legado de conhecimento técnico e colaboração institucional. É tudo muito excitante, especialmente para observadores da China, popularmente conhecidos como os China Watchers, como eu.
No entanto, seria ingênuo subestimar os desafios. A barreira linguística é o mais óbvio. O mandarim é um idioma notoriamente difícil para falantes de línguas latinas, e o português, apesar de sua crescente popularidade (está presente em mais de 27 universidades como curso de graduação) ainda é pouco difundido na China. A expansão do número de Institutos Confúcio no Brasil e de leitores de português na China é um passo na direção certa, mas a formação de uma geração de tradutores, intérpretes e acadêmicos fluentes em ambos os idiomas é um projeto de longo prazo. Mesmo com o avanço da IA, ainda precisaremos de pessoas para o guanxi com os chineses. Nisso não há dúvidas.
Outro desafio é a diferença nos referenciais culturais. Referências que são fundamentais para o Ocidente, como o Natal, dizem muito pouco aos chineses. O inverso, claro, também é verdadeiro. Nomes como Qu Yuan, o grande poeta da antiguidade chinesa, ou Lu Xun, o pai da literatura moderna, são desconhecidos para a imensa maioria dos brasileiros. Superar esse abismo de referências exige mais do que eventos pontuais; exige uma imersão profunda e contínua na cultura do outro. E às vezes um pouco de improviso, como no meu caso que justifico o natal como o “festival da primavera” brasileiro.
Além disso, há a questão da assimetria. A China, hoje, possui uma estratégia de diplomacia cultural muito mais estruturada e bem financiada do que o Brasil. O conceito de soft power, a capacidade de influenciar através da cultura e dos valores, é levado muito a sério em Beijing. O Brasil, por outro lado, ainda patina na formulação de uma política cultural externa consistente e de longo prazo. O Ano da Cultura e do Turismo pode ser um catalisador para mudar esse quadro, mas dependerá da vontade política, investimento e, sobretudo, de uma visão estratégica que vá além do calendário de eventos de 2026.
Para que a iniciativa de 2026 não se resuma a uma série de eventos protocolares, é crucial detalhar e expandir as áreas de cooperação. No setor audiovisual, por exemplo, a criação de um fundo de coprodução bilateral poderia ser um passo decisivo. Este fundo poderá financiar não apenas longas-metragens de ficção, mas também documentários e séries que explorem as conexões históricas e contemporâneas entre os dois países. Já imaginou uma série documental sobre a imigração chinesa para o Brasil no século XIX, ou sobre a jornada de jogadores de futebol brasileiros na Superliga Chinesa? O potencial narrativo é imenso e praticamente intocado.
No campo acadêmico, a criação de cátedras de estudos brasileiros em universidades chinesas de prestígio e de cátedras de estudos chineses no Brasil seria um legado de valor inestimável. Essas cátedras poderiam se tornar centros de pesquisa e formação de uma nova geração de especialistas, fomentando um debate mais qualificado e menos suscetível a clichês. A tradução de obras literárias e acadêmicas também precisa de um impulso significativo. Quantos clássicos da literatura brasileira estão disponíveis em mandarim? E quantos pensadores chineses contemporâneos são lidos no Brasil? A resposta, em ambos os casos, revela uma lacuna que precisa ser preenchida com urgência.
Outra dimensão que não pode ser ignorada é o papel dos influenciadores digitais e produtores de conteúdo na internet para a construção dessa ponte cultural. Vivemos numa era em que um vídeo de 30 segundos no TikTok pode alcançar milhões de pessoas e moldar percepções de forma mais eficaz que décadas de diplomacia tradicional. Ou até mesmo conteúdos mais longos, como o podcast BiYiNiao do Livro, do incrível Calebe Guerra. Influenciadores brasileiros que mostram seu cotidiano para audiências chinesas, ou criadores de conteúdo chineses que exploram a cultura brasileira, têm um potencial transformador que ainda está sendo subutilizado. Imaginem o impacto de parcerias estruturadas entre criadores de conteúdo dos dois países, produzindo material que vai além dos estereótipos e mostra a complexidade real de ambas as sociedades. É uma linguagem que as gerações mais jovens dominam e que pode ser decisiva para o sucesso de qualquer iniciativa cultural de longo prazo.
O sucesso do Ano da Cultura e do Turismo Brasil-China não deve ser medido apenas pelo número de eventos realizados ou de turistas transportados. Nem pela atuação de uma só entidade, como o governo federal. O verdadeiro teste será a sua capacidade de plantar sementes de curiosidade e entendimento que possam florescer nas décadas seguintes. Será a sua capacidade de inspirar um jovem brasileiro a estudar mandarim, um estudante chinês a se aprofundar na história do Brasil, um cineasta a buscar parceiros do outro lado do mundo, uma agência de influencers de viagem a colocar os dois países mais próximos, um think-tank em promover uma agenda de eventos. É um imperativo para nós, observadores da China e sinólogos, que queremos somente o melhor para os dois lados dessa relação.
O legado do Ano da Cultura e do Turismo Brasil-China 2026 estará na capacidade de gerar curiosidade genuína, de plantar dúvidas produtivas, de fazer com que brasileiros e chineses se vejam não como abstrações geopolíticas, mas como pessoas reais, com histórias fascinantes para contar. Se conseguirmos isso, teremos dado um passo decisivo para construir uma parceria que transcende os ciclos políticos e as flutuações econômicas. Uma parceria verdadeiramente estratégica porque é, antes de tudo, profundamente humana.
Fotografia: Pexels
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