Recrudescimento militar à vista?

Os documentos de defesa japoneses e a ascensão chinesa no teatro de segurança do Leste Asiático

28 MAY 2023
Recrudescimento militar à vista?

Durante o seu discurso na John Hopkins University School of Advanced International Studies (SAIS) em janeiro de 2023, Fumio Kishida, atual Primeiro-Ministro do Japão, afirmou que “é absolutamente imperativo que o Japão, os Estados Unidos e a Europa estejam unidos na gestão das respectivas relações com a China.” O discurso enfatiza o “fator China” como uma das grandes preocupações do governo japonês e reforça o interesse do arquipélago por uma maior parceria com os Estados Unidos, e outros países de seu entorno, diante de um cenário internacional e, sobretudo, regional, cada vez mais instável. Tais discursos enfatizando a China como uma possível ameaça à ordem internacional tornaram-se cada vez mais corriqueiros dentro dos documentos oficiais relacionados à defesa do Japão.

Ao analisar o Livro Branco de Defesa do Japão de 2022, por exemplo, logo nas primeiras páginas podem ser encontradas palavras endossadas pelo Ministro da Defesa, Nobuo Kishi, sobre a competição estratégica entre nações, que tornou-se mais aparente com as transformações na balança de poder global.[1] Nesse cenário, a China, a Coreia do Norte e a Rússia são apresentados como fatores desestabilizadores dessa balança. No que tange à China, o Japão enfatiza as ações unilaterais de Beijing para modificar o status quo no Mar do Sul e no Mar do Leste da China, bem como apresenta receios em relação ao Estreito de Taiwan.

As preocupações com a China e com um entorno regional restritivo não são necessariamente novas e são centrais para compreender as transformações nas políticas externas e de segurança que o governo japonês tem tentado mobilizar nos últimos anos. Durante o governo Shinzo Abe (2012-2020), por exemplo, foram realizados esforços para o fortalecimento das capacidades defensivas do país - como ilustra a aprovação de medidas como as Leis para Paz e Segurança de 2014/2015 -, e para tornar a política externa do Japão mais ativa para a região da Ásia-Pacífico.[2]

Já em 2022, a revisão de documentos estratégicos, estreitamente relacionada com a evolução das preocupações e da política externa e de defesa do Japão, reforçam o debate sobre a militarização do arquipélago. Os três novos documentos estratégicos lançados em dezembro de 2022 foram: (a) a Estratégia de Segurança Nacional (NSS), que representa a política básica do Japão em segurança nacional com foco em assuntos diplomáticos e política de defesa, e com base em uma visão de longo prazo de seus interesses nacionais - o documento é o segundo publicado pelo Japão, tendo sido o primeiro em 2013;[3] (b) a Estratégia de Defesa Nacional (NDS), que fornece direções de médio a longo prazo às políticas de defesa para estimular as capacidades de defesa do país - é a sexta versão do documento publicado pelo Japão, sendo anteriormente publicado em 1976, 1995, 2004, 2010 e 2018;[4] e (c) Defense Buildup Program (DBP), que é complementar ao NDS e fornece diretrizes de programa para construir e manter as capacidades críticas de defesa necessárias para dar suporte aos objetivos do NDS.[5]

Esses documentos reforçam a necessidade, por parte do Japão, (a) da manutenção da relação com os Estados Unidos e (b) a busca por se tornar um ator mais ativo na arena internacional, sobretudo no seu entorno, por meio de alianças informais e cooperação com países da região, que por sua vez aumentam a própria capacidade de promover a sua própria segurança. Em relação ao primeiro ponto, a própria militarização do Japão e a transformação em suas políticas de segurança não podem ser compreendidas sem considerar a pressão dos Estados Unidos nos últimos anos para que o Japão arcasse cada vez mais com os custos da aliança entre eles. Em relação a esta aliança, o Japão vivencia de forma constante dois grandes medos: de ser abandonado (abandonment) e de ser enredado em tabuleiros e disputas de outros países (entrapment).[6]

Para ilustrar, o Japão vivencia o medo de ser abandonado pelos Estados Unidos, de não ação de Washington, em caso de escalonamento de conflitos na Ásia - como em relação, por exemplo, às ilhas Senkaku/Diaoyu/Diaoyutai -, ou de ser obrigado a agir em assuntos/conflitos que não dizem respeito à sua segurança nacional - fora do tabuleiro asiático, como conflitos no Oriente Médio.[7] De fato, o debate de abandono é muito mais aparente nas próprias percepções do Japão, posto que em livros brancos japoneses lançados durante o governo Trump - documentos que delineiam as políticas de defesa, estratégias e avaliações dos desafios de segurança do Japão -, Tóquio expressou receios em relação às capacidades orçamentárias de Washington e a confiabilidade de que o país agiria.[8]

No segundo ponto, em relação à postura mais ativa do Japão, é possível observá-la significativamente desde a segunda administração de Shinzo Abe (2012-2020). Durante seu governo há o lançamento de uma política externa designada “Pró-Ativa para Ásia.” Esta política influenciou para que ocorresse a intensificação nas articulações do Japão com países do Sudeste Asiático em matéria de cooperação em defesa com a realização de treinamentos militares e de vigilância com os membros do QUAD (composto por Japão, Índia, Austrália e Estados Unidos).[9] Tais pontos estão relacionados à estratégia de um “Indo-Pacífico livre e aberto” (“Free and Open Indo-Pacific Strategy”).[10]

Nesse cenário de recrudescimento das capacidades do Japão e maior ativismo do país, a China é um fator central. Afinal, por mais que ambos os países sejam importantes parceiros econômicos e comerciais, a linguagem entre eles tem se modificado no decorrer dos anos. Analisando os documentos oficiais supramencionados, há uma mudança na linguagem que expressava “preocupação” com as atividades da China, para o discurso de que o gigante asiático se tornou uma questão de “séria” preocupação para o Japão e para a comunidade internacional.[11] A NSS descreve a China “como o maior desafio estratégico” (“greatest strategic challenge”) para o arquipélago e para a comunidade internacional, seguida pela Coreia do Norte e Rússia.[12] O “fator China” também aparece no NDS com menções destinadas a apresentar o potencial militar do país e há ênfase nas ações unilaterais chinesas no Mar do Sul e no Mar do Leste da China.[13] Existem indicações sobre o interesse bastante ambicioso do Japão de romper o teto de gastos tradicionais de até 1% do PIB em orçamento para defesa. A administração Kishida pretende aumentar o orçamento de defesa para 2% do PIB em cinco anos, mas neste momento, mesmo dentro do partido no poder, não há consenso sobre como financiar o orçamento.[14] Tais elementos indicam para uma maior militarização do Japão com o interesse pelo aumento de suas capacidades de contra-ataque (counterstrike) e defesa tanto marítima como aérea.

O governo japonês também tem procurado, como parte da sua estratégia de fortalecimento militar, pressionar para que empresas como Toshiba Corp e Mitsubishi Electric Corp aumentem sua produção de equipamentos militares de defesa em apoio às Forças de AutoDefesa (FAD). Todavia, são encontradas algumas resistências por parte das empresas que possuem receios tanto em relação à sua reputação frente à população japonesa, quanto sobre qual seria o futuro do investimento das empresas na construção de fábricas caso seja revertido o projeto de fortalecimento das capacidades japonesas nos próximos anos.

É importante apontar que a política de defesa e segurança do Japão está em constante evolução, buscando o aumento de suas capacidades de defesa. Entretanto, existem restrições orçamentárias, produtivas e também de cunho político-social à essa expansão. A questão político-social talvez seja uma das mais simbólicas, na medida em que retrata as possíveis cisões entre as percepções das lideranças em torno dos problemas de segurança no Leste Asiático e os interesses da opinião pública japonesa em relação a esse recrudescimento militar ou não. Afinal, desde o fim da Guerra Fria, convencionou-se na literatura o debate de que a população do país foi central para que o Japão abraçasse o pacifismo e se posicionasse de forma reticente à adoção de medidas mais militaristas.[15]

Todavia, mesmo considerando a existência de receios acerca da postura anti-militarista da população japonesa, tal inclinação parece estar se modificando. Uma pesquisa realizada pelo Yomiuri Shimbun em 2022 apontou que 81% dos correspondentes veem a China como uma ameaça à segurança nacional do Japão, enquanto apenas 15% não a consideram. A Coreia do Norte, curiosamente, foi vista como uma ameaça à segurança por 72%, em comparação com 25% que não viam a Coreia do Norte dessa forma. Em relação ao poder militar, a pesquisa constatou que 70% dos entrevistados aprovam que o Japão melhore suas capacidades de defesa, em comparação com 24% que desaprovam. O Asahi Shimbun também realizou uma pesquisa em 2023, após a invasão da Rússia à Ucrânia, e encontrou como resultado que 64% dos votantes acreditam que o Japão deve aumentar suas capacidades defensivas.

Nesse sentido, as transformações no Leste Asiático provocadas pela ascensão da China e a postura cada vez mais ativa e assertiva do país internacionalmente, têm influenciado as percepções tanto do Estado, como da própria população japonesa, o que afeta o comportamento do país no tabuleiro regional. Estamos vivenciando nos últimos anos a evolução da política de defesa e segurança do Japão em direção a um maior ativismo e também à uma maior militarização, com recrudescimento de suas capacidades militares. Em um cenário de tensões geopolíticas e dinamicidade econômico-comercial, o Leste Asiático é um tabuleiro de segurança central para observarmos no futuro. Afinal, parece estar emergindo na região espirais de dilemas de segurança, e o Japão é central nesse tabuleiro, como ator que busca maior protagonismo regional e internacional, como terceira maior economia do mundo, e como rival histórico da China e aliado preferencial dos Estados Unidos.

Referências

  1. Ministério da Defesa do Japão (MDJ), “Livro Branco de defesa.” 2022. https://www.mod.go.jp/en/publ/w_paper/index.html
  2. Ilai Saltzman, “Growing Pains: Neoclassical Realism and Japan's Security Policy Emancipation,” Contemporary Security Policy 36, no. 3 (2015): 514-518; Christopher W. Hughes, “Japan’s ‘Resentful Realism’ and Balancing China’s Rise,” The Chinese Journal of International Politics 9, no. 2 (Verão 2016).
  3. MDJ, “National Security Strategy of Japan,” 2022. https://www.cas.go.jp/jp/siryou/221216anzenhoshou/nss-e.pdf
  4. MDJ, “National Defense Strategy,” 2022, https://www.mod.go.jp/j/approach/agenda/guideline/strategy/pdf/strategy_en.pdf
  5. MDJ, “Defense Buildup Program,” 2022. https://www.mod.go.jp/j/approach/agenda/guideline/plan/pdf/program_en.pdf
  6. Stephen M. Walt, “Alliances in a Unipolar World,” World Politics 61, no. 1 (Janeiro 2009): 98-99.
  7. Michael J. Green, By More than Providence: Grand Strategy and American Power in the Asia – Pacific Since 1783 (Nova Iorque: Columbia University Press, 2017): 522.
  8. Jennifer Lind, “The Art of the Bluff: The US-Japan Alliance Under the Trump Administration,” emChaos in the Liberal Order: The Trump Presidency and International Politics in the Twenty-First Century, 1ª ed., editado por Robert Jervis et al. (Nova Iorque: Columbia University Press, 2018).
  9. Takashi Inoguchi e Ankit Panda, “Japan’s Grand Strategy in the South China Sea. Principled Pragmatism,” em Great Powers, Grand Strategies: The New Game in the South China Sea, edited by A. Corr (Annapolis, MD: Naval Institute Press, 2018), Edição Kindle.
  10. Alana C. G. de Oliveira, “Mobilizing resources and signaling intentions: a neoclassical realist analysis of Japan’s domestic and international instrumentalization of the Senkaku Islands dispute and China’s maritime assertiveness,” Revista Brasileira de Política Internacional 64, no. 1 (2021): 13-14.
  11. MDJ, “NSS,” 9.
  12. MDJ, “NSS”, 9.
  13. MDJ, “NDS,” 6.
  14. Jennifer Kavangh,“Japan's New Defense Budget Is Still Not Enough,” Carnegie Endowment for International Peace, Fevereiro 8, 2023, https://carnegieendowment.org/2023/02/08/japan-s-new-defense-budget-is-still-not-enough-pub-88981
  15. Berger, Thomas U, From Sword to Chrysanthemum: Japan's Culture of Anti-militarism (Oxford: Westview Press, 1997).

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