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Na grande área das ciências sociais, consolidou-se a prática de tratar a China como um objeto cuja compreensão depende de imagens previamente formuladas por centros de poder externos ao país.
Com suas culturas tão antigas e influentes, a China facilmente despertou o interesse histórico do Ocidente que ora buscava nela exemplos a serem adotados, ora buscava uma terra a ser dominada pela força bruta. Quaisquer características adotadas para a criação de uma imagem Ocidental da China, entre seus “avanços” e “atrasos”, a primeira China foi construída nos centros de poder da Europa e da América do Norte. Essa imagem reflete, por vezes, a experiência histórica desses centros com o país. Não por acaso, um dos centros mais influentes de estudo da China nos EUA é o Instituto Harvard-Yenching, uma organização criada para apoiar a Universidade Yenching, fundada pela junção de escolas cristãs na China no começo do Século XX. [1]
A dependência das mediações do Norte Ocidental continua a ser um dos maiores obstáculos para essa compreensão. A maior parte das teorias utilizadas para estudar a China foi desenvolvida em contextos onde a prioridade era analisar disputas hegemônicas, rivalidades de grandes potências ou processos de modernização inspirados em modelos euro-americanos. Essas teorias são úteis em certos contextos, mas não necessariamente se ajustam às perguntas que emergem do Sul Global. Elas tendem a reproduzir lógicas de contenção, competição ou difusão de valores que não explicam inteiramente as interações práticas entre China e países em desenvolvimento. [2]
A construção intelectual dessa primeira China conta tanto com produção de conhecimento de excelência, como com coberturas jornalísticas quase trágicas, todas inevitavelmente destinadas à criação de conhecimento guiado por interesses geopolíticos. Essa linha intelectual organiza categorias de interpretação, define quais perguntas são consideradas relevantes e estabelece hierarquias epistêmicas. A narrativa da primeira China, sem remorsos, beneficia instituições sediadas nos Estados Unidos e na Europa.
Ao mesmo tempo, o país que tinha sua história contada por outros, começou a gestar uma narrativa internacional própria. A criação da segunda China tomou forma com a Revolução Comunista de 1949 e começou a tomar força com o começo do processo de abertura e reforma em 1978, chegando ao ápice em 2013 com a ideia de “Contar bem contada a história da China”. Formulada por Xi Jinping, a ideia de contar a história da China é mais uma dentre as diversas iniciativas oficiais do governo chinês para expandir uma narrativa oficial. Muito criticada por alguns, a segunda China é uma forma de subverter a ideia de que a imagem do país precisa ser criada em centros de poder alheios ao povo e agentes da própria história.
No entanto, a segunda China sofre com um problema estrutural grave. É moldada pela necessidade de apresentar o país como coerente, eficiente, orientado para o futuro, muitas vezes falhando em mostrar também seus desafios e atributos negativos. A frequente ênfase em estabilidade, prosperidade, cooperação internacional e continuidade civilizacional soa por vezes como uma narrativa artificial e curada para a audiência. A narrativa oficial chinesa, ao enfatizar somente cooperação, ganhos mútuos e respeito à soberania, se mostra insuficiente para compreender o impacto internacional da própria China, criando problemas localizados e complexos. [3]
Duas construções políticas, voltadas aos seus respectivos centros de poder, servem aos interesses de quem observa e passam a sensação da falta de entendimento de uma China legítima, vista pelo resto para o resto. Essa opacidade não é natural, é produzida. Emerge de uma assimetria de conhecimento que acompanha a assimetria de poder da ordem internacional. Milton Santos chamava atenção para como a construção de saber, a atuação do estado e a globalização, criam espaços. Assim, a criação de conhecimento sobre a China, acaba também criando diferentes lugares pelos mais diversos interesses. [4] As análises que circulam no debate internacional, portanto, acabam filtradas por agendas e preocupações desse Ocidente da primeira imagem e pelos anseios e planos de Beijing na segunda imagem.
A solução não passa por ignorar uma ou outra imagem, ambas possuem seus problemas, mas também possuem méritos e volumosos investimentos em criação de conhecimento especializado. A solução está mesmo é na compreensão de quem não é atendido por essas duas Chinas, o resto do mundo. É nessa problemática que se torna necessária a formulação da terceira China.
A terceira China é uma mudança do ponto de vista, é a inversão da lógica de centros de poder para a criação de um olhar da geografia periférica do poder. A terceira China deve compreender a nova superpotência a partir de lugares que não compartilham das agendas estratégicas do Norte Ocidental, mas que tampouco se limitam ao discurso político produzido em Beijing. Ela é, portanto, a China vista a partir do resto do mundo. Mais especificamente, a China percebida para além de divisões e pela experiência das sociedades e estados pelo mundo. Essa ideia não é nova, faz parte de uma agenda para a construção de conhecimentos globais. [5]
A terceira China não se oferece pronta porque não é produto de uma narrativa pré-definida. É uma construção analítica que depende de esforço acadêmico e social para que o conhecimento seja construído com todo o globo. Acesso à China, conhecimento do idioma, intercâmbio acadêmico amplo, são somente o primeiro passo desse esforço. O estudo da terceira China deve reconhecer que as relações com a China envolvem oportunidades econômicas reais, investimentos estratégicos, cooperação tecnológica e intercâmbios educacionais com efeitos significativos. Ao mesmo tempo, essas relações também criam dependências, afetam políticas industriais, moldam percepções públicas e geram disputas entre elites. Uma análise situada é capaz de captar essa ambivalência e de evitar tanto o entusiasmo acrítico quanto a demonização automática.
A lusofonia oferece um caso exemplar. Trata-se de um espaço linguístico marcado por histórias coloniais distintas, mas atravessado por desafios comuns, como a necessidade de diversificar economias, ampliar capacidades tecnológicas, enfrentar desigualdades internas e fortalecer a autonomia estratégica. A presença da China nesses países é crescente e assume formas variadas, desde investimentos em infraestrutura até programas de intercâmbio acadêmico. Compreender essas dinâmicas a partir de categorias formuladas no Norte Ocidental reduz a capacidade analítica desses países. Por outro lado, aceitar integralmente a narrativa chinesa produz uma imagem excessivamente benigna que ignora tensões locais e regionais. A construção de um ecossistema epistêmico próprio permite romper essa dependência dupla.
Nesse sentido, iniciativas voltadas à formação, ao acesso a fontes e ao debate crítico, como a Observa China 观中国, têm valor estratégico. Elas contribuem para criar condições de produção de conhecimento que não reproduzam simplesmente padrões hegemônicos, mas que também recusem leituras excessivamente alinhadas à narrativa oficial chinesa. O objetivo não é substituir um centro interpretativo por outro, mas fortalecer a capacidade de interpretar a China de forma autônoma. O resultado é a construção de uma visão que reconhece o país em sua complexidade, entende suas contradições e avalia sua atuação externa a partir das necessidades e experiências do Sul Global.
A superação das imagens tradicionais da China depende, portanto, de um duplo movimento. É preciso criticar tanto o olhar ocidental quanto o olhar estatal chinês e, ao mesmo tempo, construir perspectivas que reflitam a posição concreta de países que se relacionam com a China de maneira cada vez mais estruturada. A terceira China, entendida como mudança de posição observacional, permite esse deslocamento.
A criação da terceira China, portanto, não é apenas uma alternativa metodológica. É uma urgência política e intelectual. Permite ultrapassar as simplificações produzidas por centros hegemônicos de conhecimento, evita a reprodução de narrativas oficiais e cria condições para compreender o país de forma global. É o caminho para desenvolver uma visão equilibrada, informada e mais coerente para quem não está inserido nem na disputa hegemônica ocidental nem no projeto nacional chinês, mas que ainda assim precisa entender a China para agir e existir no mundo.
Fotografia: Carolina Souza
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