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As campanhas em 2022 focaram suas estratégias na situação econômica do Brasil, embora os resultados eleitorais tenham em parte contestado a adoção deste enfoque. De toda forma, em um cenário marcado por uma inflação acumulada de 8,73% (IPCA até agosto de 2022), desvalorização cambial e uma consequente taxa Selic de 13,75%, além dos elevados níveis de desemprego, precariedade laboral e insegurança alimentar, nenhum tema parecia ser mais apelativo.
Nesse contexto, parte do discurso dos presidenciáveis foi direcionada para propostas voltadas ao crescimento econômico do país e a sua posição nas cadeias globais de valor, além de políticas para gerar empregos e elevar a renda. O tema da reindustrialização apareceu nos pronunciamentos dos líderes nas pesquisas, o que tornou a China mais um elemento importante do debate eleitoral. Apesar de possuírem visões e propostas diferentes para superar o processo de desindustrialização, ambos os lados fizeram citações que o relacionam à China.
O Ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou que o Brasil não quer a “chinesada” entrando no país, em possível referência aos impactos negativos da entrada de mercadorias e investimentos chineses no setor industrial brasileiro. Como remédio, o Ministro propõe uma redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), inferindo que a elevada carga tributária coloca obstáculos à competitividade da indústria nacional. O ex-presidente Lula também não poupou a China. Em discurso na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), onde buscava conquistar a confiança do empresariado, alegou que o gigante asiático está tomando o espaço da indústria brasileira.
As relações comerciais sino-brasileiras são marcadas pela complementaridade, embora em bases nitidamente assimétricas. A China, diante de sua competitividade industrial, vem conquistando cada vez mais espaço no mercado interno brasileiro. Segundo dados oficiais, foram mais de US $47 bilhões de importações provenientes da China em 2021, sobretudo de bens de média e alta complexidade tecnológica, correspondendo a uma participação de 21,7% no total das importações brasileiras. Neste mesmo ano, a China foi destino de 31,3% das exportações brasileiras (US $87,9 bilhões), compostas sobretudo por commodities – soja, minério de ferro e petróleo concentraram 77% das vendas para o país asiático.
Neste cenário de trocas desiguais, a China é por vezes vista como uma vilã, enquanto a situação econômica do país como uma vítima passiva. Em entrevista para a Observa China, o professor Evandro Carvalho (FGV) argumenta que "a desindustrialização do país não se deve à China, mas a fatores complexos no plano internacional e às políticas governamentais adotadas no plano interno”. Em outras palavras, “atribuir a responsabilidade à China em relação a essas questões é, na verdade, escolher um bode expiatório para se eximir de qualquer culpa." Tendo isso em mente, seria possível sugerir que os discursos dos presidenciáveis acabam deixando de lado as decisões (ou falta delas) que levaram o país a esta encruzilhada.
A afirmação de que o Brasil necessita diversificar sua pauta comercial para a China é comumente realizada em diversas esferas de discussão, embora pouco seja comentado sobre as estratégias e políticas necessárias para concretizar este objetivo. À direita e à esquerda, são sublinhados diagnósticos e possíveis soluções, geralmente únicas, simples e isoladas: altos impostos, ausência de incentivos, necessidade de medidas protecionistas, entre outras. Ao contrário de teorias estáticas que levam a soluções fáceis, é preciso pensar em estratégias holísticas, pragmáticas e que levem em conta a complexidade da realidade existente, contemplando aspectos como a estrutura produtiva brasileira, os setores com potencial de desenvolvimento, os obstáculos à competitividade da indústria nacional, o panorama das relações com a China, entre outros.
Em artigo de opinião escrito à Folha, o professor Maurício Santoro (UERJ) explica que a competitividade chinesa é um sintoma, e não a causa, da desindustrialização brasileira. Por outro lado, Santoro argumenta que ocorreu uma falta de planejamento por parte do Brasil quando dos efeitos decorrentes do crescimento chinês na economia mundial. De certa forma, as benesses do boom das commodities teriam ofuscado a elaboração e execução de estratégias de longo-prazo. Em outras palavras, os efeitos que a ascensão chinesa poderia gerar para os produtores brasileiros não foram suficientemente aproveitados, cristalizando assimetrias que se evidenciam na composição do intercâmbio comercial, sobretudo.
Cabe destacar que o equacionamento dos desafios relacionados com a desindustrialização não precisa surgir apenas da política interna. Em entrevista ao Valor Econômico, a pesquisadora Karin Vazquez (Center for China and Globalization) defendeu que o Brasil poderia utilizar de seu relacionamento com a China para alavancar seus planos de reindustrialização. Considerando que setores ligados à tecnologia e sustentabilidade são de grande interesse para ambos os países, é possível pensar no desenvolvimento de uma relação complementar que fortifiquem setores emergentes e com potencial de mudança estrutural no Brasil. A atração de investimentos em energia eólica e solar, veículos elétricos, infraestrutura e telecomunicações aparecem como potencialmente benéficos ao desenvolvimento brasileiro, além de negócios vinculados com o setor de tecnologia de informação, que apenas em 2021 recebeu dez projetos de investimento, segundo estudo recente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).
Nesta mesma linha, em conversa com o professor José Augusto Ruas, da Faculdade de Campinas (FACAMP), sobre a dinâmica política e comercial entre Brasil e China, foi argumentado que não são apenas incentivos e baixos impostos que ajudarão o Brasil a se reindustrializar e diversificar a sua pauta exportadora. Segundo ele, é praticamente inviável alterar a relação comercial no curto prazo, dada a dificuldade em contornar a competitividade da indústria chinesa. Além disso, um aumento da liberalização comercial, com redução ou mesmo eliminação de barreiras, possivelmente potencializaria as exportações de setores já competitivos. Um eventual acordo de livre-comércio entre Mercosul e China, por exemplo, poderia trazer efeitos contrários a uma proposta de reindustrialização.
A liberalização de investimentos também pode não contribuir para qualificar essas relações, uma vez que os benefícios desses investimentos para a reindustrialização se relacionam com suas características e finalidades. De acordo com Tulio Cariello, autor do referido estudo do CEBC, cerca de metade dos investimentos chineses desde 2007 entraram no Brasil pela via da aquisição de ativos existentes (brownfield), modalidade de entrada que não assegura desdobramentos positivos em termos de ampliação da capacidade produtiva, geração de valor, criação de empregos, transferência de tecnologia e integração com fornecedores locais.
Para evitar efeitos contrários, esses investimentos devem ser balizados estrategicamente por meio de incentivos que estabeleçam contrapartidas com potencial de gerar ganhos mútuos, de acordo com Ruas. Nesse sentido, duas propostas foram ressaltadas: (1) balizar os investimentos em setores com potencial de crescimento e estabelecer incentivos para favorecer o reinvestimento interno, uso de mão de obra local e integração com fornecedores nacionais (tal como realizado pela Argentina em suas exigências para a construção de uma planta de liquefação de gás natural na reserva de Vaca Muerta em parceria com a China); e/ou (2) atrair investimentos produtivos voltados para a exportação, em linha com as próprias estratégias de desenvolvimento dos países do Leste Asiático, e da China em particular. Outro caminho ainda é apontado por Tatiana Rosito, que salienta a possibilidade de o Brasil internalizar tecnologias ou de partes de cadeias de produção que poderão deixar a China nos próximos anos, sobretudo em razão das expectativas de uma redução da concentração das atividades manufatureiras no país asiático sob a ideia de “decoupling” (desacoplamento) ou mesmo de uma maior resiliência às cadeias de abastecimento globais.
Todavia, é importante mencionar que qualquer medida unilateral sobre uma multinacional estrangeira traz implicações no âmbito do Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionada ao Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). A atração de investimentos precisa ser feita de forma planejada pelo governo e articulada com empresas chinesas. Esse movimento deve se suceder em uma via de mão-dupla, sob a qual o governo apresente condições regulatórias e institucionais favoráveis ao investimento no Brasil. A articulação político-diplomática bilateral se mostra como mais do que necessária para esta realização.
Por fim, a resposta de que a liberalização comercial e dos investimentos daria conta do recado aparenta ser demasiado simplista, considerando os imensos desafios na tarefa de reindustrializar o Brasil. É possível que a liberalização excessiva potencialize os setores que já são produtivos e consolidados no país e prejudique a competitividade de outros setores que incrementam a Formação Bruta de Capital Fixo - ou seja, o aumento dos bens de capitais das empresas (máquinas, equipamentos e materiais de construção), que indica, consequentemente, a capacidade de produção do país - e que se dedicam à produção de mercadorias com maior valor agregado. Além disso, acabaria por favorecer o segmento agroexportador, o qual, além de beneficiado por regimes de isenção fiscal e tributária, emprega contingentes decrescentes, devido ao acelerado processo de mecanização de suas atividades.
Vale ainda recordar as teorias cepalinas de deterioração dos termos de troca, que sublinham a lógica distinta de valorização de produtos primários e industrializados ao longo do tempo. Nesta visão, a concentração da pauta exportadora em poucas commodities e o duradouro processo de desindustrialização potencialmente consolida o Brasil em uma posição subordinada na divisão internacional do trabalho, ao mesmo tempo em que torna o país dependente do ritmo de crescimento da economia mundial e das oscilações nos preços internacionais.
Ressalta-se que este argumento não é e nunca foi uma preconização contrária ao setor agroindustrial, o qual é e continuará sendo de suma importância ao país, sobretudo pela sua contribuição à estabilidade das contas externas e pelo desenvolvimento de setores industriais e de serviços ligados ao campo. Porém, a inserção subordinada e dependente não se mostra como uma alternativa desejável, ainda mais em um contexto em que a China tem buscado diversificar suas fontes de importação de commodities agrícolas e energéticas.
Por esse mesmo motivo é que se faz necessária a elaboração de uma estratégia coesa e estruturada para setores industriais específicos e com potencial de crescimento, viabilizando a recepção de investimentos externos em prol de um projeto de fortalecimento e desenvolvimento nacional. Cabe ao setor diplomático brasileiro e ao Poder Executivo, maleabilidade e astúcia para forjar uma inserção internacional arrojada e, especificamente, aprimorar o diálogo político com a China, que apresenta possibilidades de se converter em um parceiro – e não um vilão – do desenvolvimento industrial brasileiro.
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